No Recife, um retrato do surto de microcefalia
3 de fevereiro de 2016No bairro do Ibura, no Recife, Gleyse Kelly embala a filha Maria Giovanna, de apenas três meses. "Meu maior medo era que ela não conseguisse andar nem falar", diz a mãe, enquanto amamenta a primeira menina da família, sentada no sofá da modesta casa em que vivem. Maria Giovanna nasceu com microcefalia.
Bebês que nascem com a malformação têm o perímetro da cabeça menor que a média e sofrem danos cerebrais mais ou menos graves, os quais geralmente causam problemas de desenvolvimento e dificuldade de aprendizado e, em alguns casos, até a morte. Gleyse descobriu o problema no sétimo mês de gravidez.
"Espero que ela seja capaz de estudar. Ela é como qualquer outra criança, só que tem a cabeça menor", diz a mãe. Para ela, a única diferença entre Maria Giovanna e seus outros três filhos, quando tinham a mesma idade, é que a menina não reage bem à mamadeira.
Gleyse está otimista sobre o futuro da filha, mas especialistas dizem ser bem provável que Maria Giovanna necessite de cuidados em tempo integral pelo resto da vida. Isso significaria um imenso desafio para a mãe, que recebe apenas 1.000 reais por mês trabalhando num posto de pedágio, e 100 reais do governo em benefícios para a criança. O marido está desempregado.
Apesar da correlação entre o vírus zika e o aumento dos casos de microcefalia no Brasil ainda não ter sido cientificamente comprovada, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou emergência sanitária internacional diante do surto da malformação e de outras complicações neurológicas registradas no país, possivelmente ligadas ao agente infeccioso.
Desde o início de 2015, o Brasil contabilizou mais de 4 mil casos suspeitos de microcefalia, contra 150 em 2014. A maioria das infecções por zika foi registrada nos estados da região Nordeste – quase um terço deles no Recife.
A principal teoria para a origem da epidemia é a de que o vírus tenha sido trazido por turistas durante a Copa do Mundo de 2014. Uma vacina deve levar anos para ser desenvolvida, e, portanto, especialistas acreditam que hoje a melhor forma de combate à doença seja acabar com os focos de reprodução do mosquito que a transmite, o Aedes aegypti.
Condições ideais para proliferação do zika
No entanto, em bairros pobres como Ibura, onde Gleyse mora, as casas são informais, a coleta de lixo é esporádica, e a população local tem nível de instrução baixo. A médica Ângela Rocha, chefe do serviço de infectologia pediátrica do Hospital Universitário Oswaldo Cruz, no Recife – onde os primeiros sinais do surto foram detectados –, diz que a situação socioeconômica precária da capital pernambucana oferece condições ideais para a proliferação do vírus.
Em Coqueiral, outro bairro do Recife, agentes de saúde distribuem panfletos para os moradores e instruem sobre como evitar o mosquito transmissor do vírus. Soldados trabalham com os agentes para eliminar possíveis larvas de mosquitos, que se proliferam na água que resta da chuva dentro de pneus e outros recipientes. Quando questionado sobre por que deixou o pneu do lado de fora da casa durante a época de chuvas, um morador responde: "Esqueci."
Numa das casas do bairro, uma mulher de meia idade diz que todos na sua família já tiveram dengue, que também é transmitida pelo Aedes. Agentes de saúde lhe disseram que, se não for esvaziada logo, a piscina de plástico das crianças no quintal da casa vai permitir que as larvas se proliferem.
Autoridades do Recife afirmam que a atual crise econômica brasileira é mais um obstáculo para o combate ao vírus e que pedidos de recursos emergenciais feitos ao governo federal não foram atendidos. O secretário de Saúde da cidade, Jailson Correia, diz que 29 bilhões de reais foram solicitados e que, até o momento, 1,3 bilhão foi recebido. "O vírus zika é muito sério. É a maior ameaça de saúde pública que enfrentamos na história recente", afirma.
Zika, gravidez e aborto
Ativistas pediram ao Supremo Tribunal Federal (STJ) uma flexibilização das leis de aborto no país – permitido apenas em caso de estupro. O objetivo é que mulheres grávidas de bebês com microcefalia sejam autorizadas a abortar. A iniciativa causou revolta nas redes sociais. Gleyse participa ativamente das discussões, postando mensagens contra o aborto.
A OMS aconselhou gestantes que pretendessem viajar para o Brasil e mulheres que vivem em áreas de incidência do zika a consultarem profissionais de saúde. Enquanto o Brasil se prepara para o Carnaval e para os Jogos Olímpicos, autoridades do país minimizam os eventuais impactos negativos do surto do vírus no turismo, mas não descartam que o setor possa sofrer algum efeito.
Reunida com a família na sala da casa, Gleyse responde mensagens no celular enquanto embala Maria Giovanna. Ela sorri e diz: "Meu maior medo era que ela morresse depois do parto."