"Nunca vi tanta miséria e desespero"
1 de fevereiro de 2016Raphaele Lindemann havia se disposto a escrever um relato de seu trabalho no front da crise migratória: em primeira mão, mas neutro. No entanto, logo o médico alemão percebeu que isso era impossível.
Nas últimas quatro semanas, ele vem prestando os primeiros cuidados a requerentes de asilo recém-chegados, num abrigo de emergência. E o que tem presenciado o convence de que a Alemanha está certa em abrir suas fronteiras aos que buscam abrigo da guerra e da miséria.
Foi justamente a acalorada polêmica atual sobre a política de portas abertas da chanceler federal Angela Merkel que o incentivou a compartilhar suas experiências no Facebook.
Lindemann é uma das poucas pessoas que presenciam o estado em que os migrantes chegam à Alemanha – antes de serem cadastrados, antes de receberem roupas doadas para se vestir, antes mesmo de poderem tomar uma ducha.
"Posso assegurar a vocês que é totalmente impossível, por exemplo, tratar de um pé com frieiras, que marchou mais de 500 quilômetros pelo inverno adentro com sapatos estragados, com meias molhadas, e ver pela perspectiva dos 'ingênuos óculos cor-de-rosa de gente boazinha'."
"Gente boazinha" (Gutmensch) é um termo empregado pelos detratores dos que defendem e se ocupam dos refugiados – e foi consagrado como "despalavra do ano" em 2015.
Alívio e gratidão
O relato do jovem profissional de medicina, formado na Universidade de Mainz, prossegue: "Essas pessoas chegam aqui num estado absolutamente desolado e digno de piedade. Certamente vai espantar algumas pessoas que 90% deles não sejam homens jovens e saudáveis. [...] A cada expediente, eu vejo entre 300 e 500 refugiados. Pelo menos a metade são crianças! Há famílias, há idosos e, sim, também há jovens. Por que não? O que todos têm em comum é estarem totalmente esgotados e exaustos. Até então eu nunca tinha visto tanta miséria e desespero de uma vez só."
A certa altura, em sua extensa postagem, ele descreve o tratamento de uma mulher chegada ao abrigo com ambas as pernas inteiramente queimadas.
"Não tenho ideia de como ela sequer conseguiu chegar até nós. Precisamos de uma hora só para desprender, das feridas cheias de pus, as bandagens coladas nelas, sujas e malcheirosas. Mas não houve reclamação e não houve nenhuma exigência. Essa mulher irradiava gratidão, por finalmente estar em segurança e por ter quem cuidasse dela."
O "vamos conseguir" de Merkel
Lindemann publica suas experiências num momento em que a opinião pública sobre a política para refugiados da chefe de governo alemã está mudando.
Quando, numa coletiva de imprensa no fim de agosto, Merkel proferiu a já famosa frase "vamos conseguir", a maioria da população ficou orgulhosa de ter uma líder tão comprometida em fazer o que é moralmente correto. Contudo, o afluxo de refugiados não arrefeceu, e ainda não há um consenso no nível da União Europeia sobre como lidar com a crise.
Para muitos alemães, a guinada ocorreu no Ano Novo: os ataques sexuais em larga escala contra mulheres na cidade de Colônia – imputados, em primeira linha, a jovens migrantes do norte da África – despertaram temor em relação à imigração descontrolada. Desde então, a popularidade de Merkel está despencando: segundo uma pesquisa de opinião recente, 40% dos alemães prefeririam que ela renunciasse.
Mas Lindemann nada contra a corrente. "Com o 'vamos conseguir' dela, pela primeira vez eu senti algo assim como respeito e reconhecimento pela chanceler federal. Porque, sem pestanejar, ela arriscou a própria carreira política para não deixar aquelas pessoas morrerem diante das nossas fronteiras; e porque ela assumiu o enorme desafio, em vez de jogar seu usual 'jogo de teflon' da espera passiva."
O médico postou o texto em sua página do Facebook na quinta-feira. Até a manhã desta segunda-feira (01/02), ele já fora partilhado mais de 275 mil vezes, acompanhado por comentários basicamente positivos, enfatizando a importância de preservar a crença de que a Alemanha continua no caminho certo na questão dos refugiados.
O relato de Lindemann se encerra com um apelo veemente à solidariedade – e um eco do slogan da chanceler democrata-cristã: "Tem gente sofrendo e morrendo. Agora. E nós podemos evitar isso. Vamos conseguir."