"Não havia vestígios de remorso"
6 de dezembro de 2019O jurista alemão Gerhard Wiese tem 91 anos. Ele foi um dos procuradores no primeiro processo na Alemanha sobre os crimes cometidos pelos nazistas no campo de concentração de Auschwitz. Os julgamentos começaram em dezembro de 1963 e se estenderam por 20 meses.
Em entrevista à DW, Wiese, o último promotor envolvido no processo ainda vivo, relembra como foi, para ele e muitos outros, entrar pela primeira vez em contato com os detalhes das atrocidades cometidas no campo de extermínio. Ele fala ainda da decepção com as sentenças aos acusados.
DW: Você foi um dos três jovens procuradores que se tornaram promotores no primeiro julgamento de Auschwitz. Como é que isso aconteceu?
Gerhard Wiese: As opiniões são divergentes quanto a isso. O meu superior, chefe do Ministério Público de Frankfurt, me informou de que os meus colegas [Georg Friedrich] Vogel e [Joachim] Kügler precisavam de apoio. As investigações tinham sido concluídas, mas a acusação ainda precisava ser terminada. Outros dizem que foi o procurador-geral em Hessen, Fritz Bauer, que ordenou isso. Nunca foi esclarecido.
Você não participou em nenhuma investigação? O que disseram seus colegas sobre essa fase?
As investigações não foram fáceis. As possibilidades técnicas por si só já eram limitadas.
A polícia e outras autoridades se dispuseram a cooperar?
Isso foi difícil. Mas tivemos muita ajuda. Hermann Langbein, presidente da Comissão Internacional de Auschwitz, havia sido um prisioneiro em Auschwitz e escrivão no consultório do médico. Depois da guerra, ele começou a recolher endereços e a contatar antigos prisioneiros. Ele nos informou então dos resultados.
Outros departamentos de polícia também tiveram de ser chamados para ouvir as testemunhas, e aconteceu de alguns terem reagido mal. Uma conversa esclarecedora ajudou. Mas não havia resistência aberta ou restrições.
Havia muitos suspeitos, mas apenas 22 foram acusados em Frankfurt. Por quê?
Fritz Bauer queria uma linha hierárquica clara do campo, do comandante ao capo. Foi assim que o julgamento foi organizado. Mais tarde, houve mais julgamentos sobre Auschwitz. Não queríamos separar os complexos, por exemplo, médicos e de liderança política. Em primeiro lugar, por causa das testemunhas que teriam que ser ouvidas várias vezes e, em segundo, porque este julgamento iria mostrar Auschwitz como um todo.
Já visitou Auschwitz?
Sim, durante o julgamento. Participei da visita ao local e do interrogatório das testemunhas que não puderam vir a Frankfurt.
O que sentiu quando esteve pela primeira vez no antigo campo de extermínio?
O lugar me causou uma grande impressão. Quando se passa pelo portão com a frase "o trabalho liberta", chega-se logo depois aos edifícios, os barracões, e sabemos o que aconteceu lá, é deprimente. Muitos advogados estavam lá durante a visita ao local. No início, algumas pessoas viam essa viagem como uma espécie de "viagem de trabalho". Quanto mais intensamente lidávamos com as tarefas no local, mais calmas essas pessoas ficavam. Não podiam esconder o fato de que o que tinham visto, mesmo sem prisioneiros, as tinha deixado muito deprimidas.
O que você sabia sobre Auschwitz antes de se tornar procurador?
Pouco. Eu fui prisioneiro de guerra no campo russo em Fürstenwalde. No pátio havia uma grande placa onde o jornal do dia era fixado. Havia imagens dos campos de concentração libertados. Eu ficava ali, impressionado. Não podia ser, eu pensava, que os alemães tenham feito algo assim. Isso é certamente propaganda russa, dizia eu. Mas estava muito enganado. Não demorou muito, eu aprendi, especialmente com os julgamentos de Nurembergue. Mas os detalhes eu só fui conhecer em conversas com meus colegas e quando estudava os arquivos.
E os acusados? Que impressão eles lhe causaram?
Um grupo de pessoas normais, nada de chamar a atenção: comerciantes, funcionários de banco, médicos... Ninguém podia negar que esteve em Auschwitz. Mas todos se fizeram de "bom moço", disseram que não fizeram nada de ruim. Não havia vestígios de remorso.
Que momentos do processo foram marcantes?
O destino da família Berner. Na primavera de 1944, os judeus húngaros foram transportados para Auschwitz. No espaço de entre oito e dez semanas, 400 mil judeus foram transportados para Auschwitz. Dia e noite. Entre eles a família Berner.
Quando chegaram a Auschwitz, foram separados: homens à direita, mulheres e crianças à esquerda. De repente, Berner viu um conhecido, Victor Capesius, um médico da SS. Ele ainda tinha o cartão de visita dele no casaco. "Pode cuidar para que eu e a minha mulher com os gêmeos e nossa filha possamos ficar no acampamento?", perguntou ele.
Quando Capesius ouviu "gêmeos", foi diretamente com eles para [o médico do campo Josef] Mengele, que também estava na rampa. Mengele fez só um gesto: as crianças tinham de voltar para a mãe. Isso selou o destino da família. Após esse depoimento, ficou um silêncio absoluto na sala. Levou um bom tempo para que o nível de ruído normal voltasse.
Em imagens de arquivo vemos filas em frente ao tribunal, classes inteiras de escola... Os alemães se interessaram pelo julgamento?
O interesse era grande. Ainda sou abordado por gente que esteve sentada na plateia naquela época. Mas quando eu pergunto como vivenciaram aquilo, não ouço muita coisa. As turmas de escola deveriam ter sido preparadas antes da visita. Nem sempre encontraram um dia "interessante". Nós três procuradores tentamos conversar com os alunos durante os intervalos relativamente curtos entre as sessões. O tempo era muito curto. Agora estou recuperando isso.
Em comparação com os crimes, o número de condenados não foi grande. Por quê?
Só posso responder a isso de forma geral. Na época, a inclinação a voltar àquele tema até o fundo novamente não era muito grande.
Você pediu prisão perpétua para todos os acusados. No final, só seis receberam tal pena. Ficou decepcionado?
Ficamos duplamente desapontados. À medida que o julgamento se aproximava do fim, tínhamos acordado com o procurador-geral Fritz Bauer apresentar uma moção no sentido de todos os acusados serem, pelo menos, punidos por cumplicidade. Auschwitz era uma operação de extermínio em escala industrial. E todos os que participaram eram parte da máquina do crime. A punição deveria depender da função. O tribunal do júri não seguiu o nosso parecer legal, e trabalhou estritamente de acordo com o Direito Penal vigente. O que é que ele fez? Podemos provar isso? Se assim for, ele será condenado. Se não, absolvido. Daí as três absolvições.
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