"Não é normal", dizem coveiros sobre trabalho em São Paulo
8 de abril de 2020Depois de vinte anos trabalhando como agente sepultador na cidade de São Paulo, Manoel Norberto Pereira diz que o ritmo de trabalho nos cemitérios mudou desde a semana passada.
"Os outros trabalhos estão suspensos. A dedicação agora é abrir cova", disse Pereira por telefone à DW Brasil.
No maior cemitério paulista e um dos maiores da América Latina, o Vila Formosa, os espaços cavados na terra diariamente para abrigar caixões saltaram de 50 para 100. "Não é normal", afirma Pereira.
A imagem das covas abertas enfileiradas rodou o mundo e levantou a suspeita de que a cidade, a mais atingida pela pandemia do novo coronavírus no país, estivesse esperando um grande número de mortes em decorrência da doença respiratória causada pelo patógeno, a covid-19.
Diante da repercussão, o prefeito Bruno Covas disse que se tratava de um procedimento padrão ao fim da temporada das chuvas. Mas os agentes sepultadores, como a categoria dos coveiros pede para ser chamada, que vivem a rotina dos cemitérios, discordam.
"A média diária no Vila Formosa é 38, 40 enterros. No último domingo (05/04), foram 62", diz João Gomes, representante do Sindicato dos Trabalhadores na Administração Pública e Autarquias do Município de São Paulo (Sindsep).
A marca superou a contagem feita no sábado, quando houve 57 enterros, e na sexta, com 52. O levantamento não é oficial, mas feito pelos próprios servidores a pedido do Sindsep.
"Para você ter uma ideia, no último domingo, os agentes fizeram enterro até as 18h45. Nosso horário de trabalho vai até as 18h, até porque não tem mais iluminação natural depois desse horário", afirma Gomes.
Desde início de abril, ele tem visitado cemitérios da cidade para apurar denúncias sobre o aumento de enterros, longas horas de trabalho e falta de álcool em gel para os agentes sepultadores.
"Por que houve esse aumento de enterros? É covid-19? São outros cemitérios que estão fechados? Ou cemitérios particulares que não quiseram enterrar?", questiona Gomes. "O clima entre os agentes sepultadores é de medo por causa dessa doença."
Até a manhã desta quarta-feira (08/04), o país registrou 667 mortes por covid-19. Dos 371 óbitos pela doença no estado de São Paulo, que registrou 67 mortes em apenas um dia, a maioria foram na capital. O estado tem 5.682 casos confirmados da covid-19., e de seus 645 municípios, 121 já registram infecções.
Um item na lista de compra da cidade chamou a atenção no Diário Oficial publicado em 3 de abril: 5 mil mantos protetores para manejo de corpos e precauções no controle de covid-19, no valor de 256,7 mil reais.
Contratação extra
O serviço funerário municipal, que já teve mais de 2.100 funcionários trabalhando nos 22 cemitérios e um crematório até 2010, hoje conta com 880 servidores. Pressionada com o cenário trazido pela pandemia, que forçou o afastamento dos agentes maiores de 60 anos, a prefeitura fez uma contratação emergencial de 220 sepultadores temporários.
Inicialmente, faltavam os devidos equipamentos de proteção individual (EPIs) que evitam a contaminação durante o trabalho pelo novo coronavírus, mas uma compra recente foi feita. Questionada pela DW Brasil, a prefeitura respondeu que o "Serviço Funerário fornece luvas, máscaras e invol, um manto protetor que embala os corpos no caixão, que evita a possibilidade de contaminação durante o traslado dos corpos".
A recomendação é que os itens sejam usados obrigatoriamente nos enterros de vítimas de covid-19. Mas há situações em que, mesmo para caixões que chegam aos cemitérios sem a sigla D3 no documento, que indica covid-19 como causa da morte, houve a indicação do mesmo ritual de segurança.
Dúvida apóso enterro
Foi o que aconteceu no enterro de Ailton Souza, que foi servidor municipal do Cemitério da Saudade por mais de 20 anos, e morreu no dia 1º de abril. Duas semanas depois de comemorar os 61 anos ao lado do pai, a filha do servidor, Vivian Souza, tentava realizar o último desejo dele: vesti-lo com um terno para o próprio enterro. Não foi possível. Na verdade, a família mal conseguiu se despedir – embalado em sacos, o corpo de Souza foi sepultado num caixão lacrado, sem velório.
Diabético, Souza foi internado em 22 de março com sintomas de gripe. Passou a respirar com ajuda de aparelhos menos de 24 horas depois e faleceu no Hospital do Servidor Público Municipal, em São Paulo.
A família ainda não sabe se Souza foi infectado pelo novo coronavírus. "Não teve teste. Ninguém nos deu nenhum teste", afirmou Vivian à DW Brasil sobre o diagnóstico de covid-19. "Não nos deram nem raio-x, ou resultado de tomografia. Não assinamos nada, nem internação, nem óbito."
O documento que foi encaminhado ao cemitério onde Souza foi enterrado chegou sem a inscrição D3. Segundo a descrição, a vítima faleceu devido à insuficiência respiratória aguda, síndrome aguda respiratória adulto, pneumonia, diabetes mellitus.
Atrás de detalhes sobre o quadro de saúde do pai, Vivian recebeu ajuda de funcionários que, em condição de anonimato, disseram que os primeiros testes feitos em Souza investigaram a presença de H1N1.
"No caso do meu pai, não temos nenhum documento em mãos provando nada sobre seu estado de saúde. Inclusive todas as notícias que tivemos foram em sigilo, dadas por profissionais do hospital em anonimato", disse à DW Brasil. "Se tivessem feito algo com seriedade, meu pai estaria vivo."
"Quem puder, fique em casa. Fiscalizem os procedimentos médicos, não tenham medo de incomodar, porque depois que nossos familiares [se vão], não adianta fazer nada, senão chorar", lamenta.
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