"Não é possível ser neutro quando há agressão irracional"
15 de março de 2023De passagem recente pelo Brasil, onde esteve com representantes da sociedade civil ucraniana em busca de apoio internacional para pôr fim à invasão russa, o cientista político Olexiy Haran diz crer que ainda haja, da parte do país, incompreensão sobre o que está em jogo na guerra da Ucrânia.
"Não é possível ser neutro quando há uma agressão irracional", afirma Haran, professor de política comparada da Universidade Nacional de Kyiv-Mohyla. Ele lembra o Memorando de Budapeste, acordo internacional dos anos 1990 pelo qual o país abriu mão de seu arsenal nuclear em troca de garantias de segurança – um dos signatários foi a Rússia. "O que está acontecendo na Ucrânia diz respeito à ordem internacional: se vamos viver sob o direito internacional ou sob a lei da selva."
Embora saúde a posição brasileira nas Nações Unidas de rechaçar a agressão russa, ele afirma que só palavras não bastam para convencer o presidente russo, Vladimir Putin, a desocupar o território ucraniano. "É preciso forçá-lo a sair e responsabilizá-lo".
Além de encontros com ONGs e visitas a universidades em Brasília e São Paulo, a delegação esteve com os senadores Jaques Wagner (PT-BA), Renan Calheiros (MDB-AL), que preside a Comissão de Relações Exteriores e Defesa do Senado, e Randolfe Rodrigues (Rede-AP), líder do governo no Senado.
"Pedimos ao Brasil que considere ingressar no tribunal internacional especial de crimes de guerra na Ucrânia. E acreditamos que o Brasil, que quer ter um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas, poderia demonstrar sua posição em apoio ao que está escrito na Carta das Nações Unidas, demandando o fim das agressões militares", assinala Haran.
DW Brasil: O Brasil tem insistido na neutralidade em relação à guerra. Se, por um lado, o país se recusa a fornecer munições para a Ucrânia, por outro lado tem, por vias diplomáticas, condenado a invasão russa. O que você acha dessa posição do Brasil?
Olexiy Haran: O Brasil denunciou a agressão russa e apoiou a integridade territorial da Ucrânia em várias votações na Assembleia Geral da ONU, tanto no governo anterior quanto no atual. É um dos 141 países que adotou essa posição; pouquíssimos estão ao lado da Rússia. Somos gratos por esse apoio, que é muito importante para nós, e também pela ajuda humanitária aos refugiados ucranianos no Brasil.
Ao mesmo tempo, pensamos que apenas falar e reprovar [Vladimir] Putin não basta para persuadi-lo a retirar-se da Ucrânia. Se gangues invadem seu apartamento, estupram e matam sua família, falar que você é contra isso e pedir para que saiam não vai adiantar.
É preciso forçá-lo a sair e responsabilizá-lo. É por isso que estamos pedindo o apoio da comunidade internacional, incluindo o Brasil; pedindo que, por favor, nos deem armas. Não estamos pedindo a nenhum país que envie soldados para lutar na Ucrânia. Estamos lutando por conta própria. Mas precisamos de armas para nos defender, defender nossos civis.
O Brasil, até agora, não deu sinais de que fará isso sob o argumento de preservar a sua posição de neutralidade.
É importante colocar pressão sobre a Rússia. É possível para o Brasil? Durante a Segunda Guerra Mundial, depois de alguma hesitação, o Brasil se juntou à aliança de países contra [Adolf] Hitler. E foi a escolha certa. Na luta entre Hitler e o mundo civilizado você não pode ser neutro. O mesmo está acontecendo agora, porque o que Putin está fazendo só pode ser comparado com a política genocida nazista.
É possível ser flexível, ajudar a Ucrânia militarmente e tentar mediar o conflito. Veja a posição de outros países: a Turquia, por exemplo. [O presidente Recep Tayyip] Erdogan está tentando ser um mediador. Ele intermediou a troca de prisioneiros e o acordo para o escoamento de grãos. Ao mesmo tempo, a Turquia está fornecendo armas para a Ucrânia. Veja também o caso da Suíça. Há alguma dúvida sobre a neutralidade deles? Não! Mas eles impuseram sanções à Rússia.
Não é possível ser neutro quando há uma agressão irracional, quando um antigo império colonial está tentando voltar. Isso não é uma guerra entre a Otan e a Rússia, como eles propagandeiam. Quando a Ucrânia foi atacada em 2014, éramos um país não-alinhado, como o Brasil. E o apoio à entrada na Otan naquela época era muito, muito baixo. Os ucranianos não queriam ser membros da Otan, a posição do governo era de não-alinhamento, nossa Constituição proíbe invasores estrangeiros em nosso solo. O que Putin está dizendo sobre a Otan é um blefe. Na verdade, ele gostaria de restaurar o império colonial.
Imagine só se um antigo império colonial vem ao Brasil e diz: "Então, o Brasil não existe, nem os brasileiros; vocês, na verdade, pertencem aos portugueses". Loucura, né? Mas é exatamente isso que Putin está fazendo. Ele não quer apenas tomar a Ucrânia, mas destruir a própria identidade ucraniana. Prova disso é que ele repetidamente nega que os ucranianos existam como nação independente da Rússia, diz que são o mesmo povo, e gostaria de instituir um tal "mundo russo" da mesma maneira que Hitler tentou construir seu império alemão.
Acha que os brasileiros sabem o que está em jogo nesta guerra?
Acho que não. A Ucrânia foi o único país no mundo a abrir mão de suas armas nucleares. Desistimos delas, voluntariamente, em troca de garantias de integridade territorial da Ucrânia, que foram fornecidas pelas grandes potências, incluindo a Rússia – que atacou uma Ucrânia não-nuclear e não-alinhada [à Otan]. Isso é inacreditável do ponto de vista do direito internacional. O que está acontecendo na Ucrânia diz respeito à ordem internacional: se vamos viver sob o direito internacional ou sob a lei da selva.
Se ele conseguir se impor – eu não acredito que conseguirá –, vai ser a lei do mais forte. Qual é o exemplo que fica para outras nações quando a Ucrânia, que abriu mão de seu arsenal nuclear, é atacada pelo país que garantiu sua segurança [no Memorando de Budapeste]? Isso deixou o mundo inteiro inseguro.
Em 2014, a Rússia anexou ilegalmente a Crimeia – a primeira anexação na Europa desde a Segunda Guerra Mundial. O nível de intensidade da guerra é o mais alto na Europa, comparável somente à Segunda Guerra Mundial. Há uma catástrofe humanitária – um em cada três ucranianos teve que deixar sua casa – com consequências econômicas globais. A Ucrânia é um dos principais fornecedores de grãos e responde por 50% de todo o comércio mundial de óleo de girassol. A invasão russa agravou a crise mundial em diferentes setores – energia, fertilizantes, alimentos.
Os russos estão ocupando Zaporíjia, a maior usina nuclear da Europa. Nunca, em toda a história, uma usina nuclear havia sido ocupada por militares estrangeiros. Chernobyl é apenas uma criança em comparação com Zaporíjia. Essa é uma ameaça enorme não só para a região, mas para o mundo inteiro.
Houve alguma sinalização positiva de parceiros brasileiros à Ucrânia nessa visita?
Discutimos a questão do armamento com senadores importantes da base governista, falamos sobre a possibilidade de conseguir munições. A resposta que nos deram foi de que os nossos argumentos serão repassados adiante. Acho que fomos ouvidos com bastante atenção. Mas a decisão final cabe ao presidente, então veremos.
Também nos reunimos com a Comissão de Direitos Humanos do Congresso e eles foram muito solidários ao condenar os crimes russos. Foi interessante, até positivamente surpreendente para mim, porque havia partidos de esquerda e comunistas, mas eles estavam condenando a Rússia. E esta é a abordagem correta. Porque a esquerda tradicionalmente defende liberdade, justiça e solidariedade. Então, é muito lógico que apoiem a Ucrânia nesta luta.
Também discutimos questões humanitárias. Pedimos ao Brasil que considere ingressar no tribunal internacional especial de crimes de guerra na Ucrânia. E acreditamos que o Brasil, que quer ter um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas, poderia demonstrar sua posição em apoio ao que está escrito na Carta das Nações Unidas, demandando o fim das agressões militares. A Ucrânia foi um dos membros-fundadores da ONU em 1945, assim como o Brasil.
Identificamos ainda algumas áreas para continuar nossa cooperação com empresas, sociedade civil e universidades brasileiras. É muito importante manter o contato não só a nível governamental, mas também ouvir as vozes da sociedade civil ucraniana – pois, sim, estamos apoiando nosso governo nesta guerra, mas, ao mesmo tempo, somos independentes e podemos criticar nosso governo mesmo durante a guerra, porque a Ucrânia é uma democracia. E esta é mais uma razão para apoiar a Ucrânia. Não é só a luta pela liberdade e integridade territorial, mas também uma luta entre a Rússia totalitária e a Ucrânia democrática.