O (des)prazer de voar depois da pandemia
2 de maio de 2020Michael O'Leary, presidente da Ryanair, se revolta: "Então não vamos voar, e pronto", anuncia, em tom de pirraça. Já ferve a discussão sobre a forma como os voos comerciais serão retomados após o fim da fase mais dura do confinamento – em especial sobre se os assentos centrais deverão permanecer vagos.
"Vagar o assento do meio não traz distanciamento social, é uma ideia idiota que não tem absolutamente nenhum efeito", se tal determinação for decretada na Irlanda, país de origem da Ryanair, "ou o governo paga pelos assentos do meio, ou não decolamos", pontificou O'Leary, do seu jeito usual.
Uma coisa é clara: na aviação, as coisas não vão voltar tão cedo ao mundo de antes do novo coronavírus – possivelmente nunca. Isso ameaça o modelo comercial de uma companhia como a Ryanair, que coloca o maior número possível de passageiros espremidos em suas máquinas, e as faz voar com mais frequência que os concorrentes, mantendo os tempos de solo no mínimo.
Ambos procedimentos estão agora em questão, pois, com as desinfecções intensivas que serão exigidas e o processo de embarque mais complicado, mantendo-se o distanciamento, as estadas em terra também se prolongarão. Considera-se também introduzir exames expressos de covid-19 nos aeroportos.
No entanto, até agora as autoridades responsáveis não têm notícias de contágios durante voos. O setor aeroviário tem frisado repetidamente que filtros de partículas de alto desempenho cuidam para que o ar nas cabines de passageiros seja pelo menos tão limpo quanto numa sala de operações; e que o fluxo de ar de cima para baixo reduz ainda mais o risco.
Mais mudanças do que após o 11 de Setembro
Embora também não haja provas de que assentos centrais livres reduziriam o risco de contágio, empresas como a Lufthansa e a Eurowings os estão bloqueando, e a Easyjet também promete viagens sem outros passageiros ao lado, pelo menos nos primeiros tempos após a retomada das operações.
"É pura cosmética, e não há nenhum motivo científico para isso", admite Shashank Nigam, chefe da firma de consultoria de aviação Simpliflying, que analisou a questão. No entanto, a psicologia é igualmente importante neste momento. Ingo Wuggetzer, diretor de marketing de cabine da Airbus promete: "Vamos continuar possibilitando uma experiência de viagem segura, que também deve ser visível para o passageiro, a fim de criar confiança."
A Simpliflying esboça um cenário desanimador de como poderão ser as viagens aéreas em tempos de desinfecção: "As mudanças vão ser pelo menos tão radicais como quando depois de 11 de setembro de 2001, se não em escala ainda maior; e serão permanentes", profetiza Nigam. "Aos controles de segurança que foram endurecidos na época, vai se juntar um elemento de desinfecção."
No estudo recém-apresentado por sua firma, voar passará a ser mais ou menos assim: já no check-in online, será exigida a apresentação de uma espécie de passaporte de imunidade, confirmando a presença de anticorpos contra o coronavírus no organismo do viajante.
Será necessário chegar ao aeroporto pelo menos quatro horas antes da decolagem. Antes de entrar na área de check-in, os passageiros terão que passar por um túnel de desinfecção e um rastreador de temperatura corporal. Uma nova agência de saúde nos transportes poderá estabelecer os padrões, juntamente com a Organização Mundial da Saúde (OMS) e associações de aeroportos e aviação.
Desconforto em troca da sensação de segurança?
"Precisamos nos esforçar para introduzir em todo o mundo medidas que o público viajante compreenda", reivindica Christoph Mueller, durante anos diretor executivo de empresas como Aer Lingus e Malaysia Airlines. "É preciso um tipo de rede de segurança. Nada é pior para a demanda do que as pessoas não embarcarem por medo de contaminação."
No entanto, se as normas esboçadas pela Simpliflying se tornarem realidade, elas também poderão ser um motivo para afastar o público dos aviões. O uso de máscara sanitária poderá ser obrigatório, como prevê o plano de retomada de operações proposto pelo lobby aeroviário alemão BDL.
Segundo este, "no embarque, no avião, durante a duração do voo e na descida, atentar para que cada passageiro esteja usando uma máscara protetora". A obrigação de portar e usar máscaras já vigora no Canadá; nos Estados Unidos, a JetBlue é a primeira a exigir o mesmo dos passageiros. A partir da próxima segunda-feira (04/05), o grupo Lufthansa também pede a seus usuários que usem máscaras.
Já se foram os tempos que se ia direto para o controle de segurança e o portão. Possivelmente será preciso estar no posto de controle já duas horas antes da partida: todas as bagagens despachadas e de mão terão que ser desinfetadas com luz ultravioleta, e pode ser que haja um exame de saúde adicional. O embarque transcorre com distanciamento de segurança, em pequenos grupos, talvez seja integrado um túnel de desinfecção na ponte de passageiros.
Glassafe, Janus, carga como vizinho
Também a bordo muita coisa será diferente, a começar pela forma de sentar. Fabricantes de assentos para aeronaves já apresentam ofertas para a era pós-coronavírus. Em seu design "Glassafe", a italiana Aviointeriors aposta numa redoma de plexiglas em torno da cabeça e ombros que lembra as antigas cabines telefônicas.
Já no modelo mais elaborado "Janus" – evocando o deus romano de duas faces –, o assento do meio fica voltado em direção contrária e é separado dos vizinhos por paredes de plexigas contínuas. Na opinião de Ingo Wuggetzer, da Airbus, "uma parede divisória higiênica poderia combinar de forma inteligente os temas conforto-privacidade e higiene-distância".
Nenhuma companhia ainda encomendou esse mobiliário pós-corona para suas cabines. Por sua vez, a firma asiática Haeco propõe, pragmaticamente, alternar na cabine fileiras de assentos com lugares para carga. Por um lado, isso garante a distância, por outro permite um melhor uso da capacidade em tempos como o atual, quando a demanda por frete é maior do que a de assentos.
A experiência de voar promete mudar em outros aspectos: pessoal de bordo com vestes protetoras; todos os passageiros de máscaras e luvas; antes da decolagem a cabine fica nublada com produto de desinfecção; de meia em meia hora a tripulação distribui desinfetante para as mãos.
Em compensação, mesmo na primeira classe e na executiva só haverá refeições empacotadas e seladas. Pessoal de limpeza especial cuidará para a higiene nos banheiros e cozinhas de bordo durante todo o voo. No aeroporto de destino, mostra-se novamente o passaporte de imunidade e se passa por um rastreador de temperatura; as malas são desinfetadas novamente antes da entrega.
É de se prever que, desse jeito, muita gente perca o gosto de viajar. Ingo Wuggetzer, da Airbus, acena com pelo menos um pouco de esperança: "Dependendo do tempo e da disponibilidade de vacinas, algumas [medidas] vão permanecer, mas outras vão sumir de novo."
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