O impacto político da CPI da Pandemia até o momento
21 de maio de 2021A CPI da Pandemia encerrou sua segunda semana de depoimentos ouvindo dois ex-ministros de Jair Bolsonaro, Ernesto Araújo (Relações Exteriores) e Eduardo Pazuello (Saúde), e reafirmando-se como uma comissão parlamentar de inquérito de grande visibilidade e alto potencial de desgaste para o presidente.
Cada depoente teve suas especificidades, mas as sessões da CPI até o momento revelam alguns elementos gerais e estratégias comuns, segundo cientistas políticos ouvidos pela DW Brasil. Entre eles, tentativas de transferir responsabilidades para gestores estaduais ou subordinados, discursos carregados de ideologia e negação da realidade e visão pouco pragmática para resolver os problemas da pandemia.
A atuação de senadores independentes e de oposição, por sua vez, tem constrangido o governo, com reflexos na popularidade do presidente, e deu à CPI o controle da agenda pública. Para tentar reagir, aliados do Palácio do Planalto avançam com pautas ideológicas na Câmara para mobilizar sua base fiel e desacreditam o trabalho da comissão como um "circo de políticos".
Alta visibilidade entre a população
Um aspecto da CPI da Pandemia que a diferencia de comissões parlamentares de inquérito instaladas nos últimos anos é seu alto grau de acompanhamento pela população, já que apura responsabilidades na gestão de uma pandemia que provocou até o momento mais de 440 mil mortes.
"É uma CPI com bastante visibilidade pública e ampla cobertura, como há tempos não tínhamos. E é natural que tenha, pois em última instância ela está investigando a perda de vidas", afirma Lucio Renno, professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília.
Ele diz que as CPIs haviam perdido influência nos últimos 15 anos, em parte devido ao fortalecimento de instituições de controle e fiscalização como a Polícia Federal e o Ministério Público Federal, que "obscureceu o papel fiscalizador do Poder Legislativo".
"Esta CPI não é igual às outras. Esta CPI não é de uma estrada, aquela que o feirante e o camelô não estão nem aí. Esta CPI está na casa de todos nós. Não tem um brasileiro que não tenha perdido um familiar, um amigo, um conhecido", afirmou o presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM), em entrevista ao jornal Valor Econômico publicada nesta sexta.
A repercussão da comissão é potencializada pelo fato de os senadores estarem dando destaque à questão das vacinas, que mexe com as expectativas da sociedade, afirma a cientista política Monalisa Soares Lopes, professora da Universidade Federal do Ceará (UFC). "A imunização é a grande saída da pandemia e é o grande tema para a população", diz.
Transferência de responsabilidade
Um traço comum nos depoimentos colhidos até momento é a tentativa de transferir responsabilidades para outras pessoas ou gestores, segundo Lopes, no que ela identifica como lógica de "cascata".
Ele menciona o ex-secretário de Comunicação Social da Presidência da República Fabio Wajngarten e o ex-chanceler Ernesto Araújo, que tentaram colocar a responsabilidade de algumas decisões sobre a pandemia nas costas de Pazuello. O ex-ministro da Saúde, por sua vez tentou transferir a responsabilidade para governadores, secretários estaduais e subordinados, como na secretária de gestão do trabalho e da educação na saúde da pasta, Mayra Pinheiro, conhecida como "capitã cloroquina", que dará depoimento na próxima terça.
Pazuello disse que partiu de Pinheiro a sugestão para criar o aplicativo de diagnóstico instantâneo TrateCov, que recomendava o uso de cloroquina. "Vamos ver se ela empurrará [a responsabilidade] para mais pra alguém", diz Lopes.
Outra estratégia usada por Pazuello para buscar isentar Bolsonaro de responsabilidade foi classificar algumas ordens e declarações do presidente em defesa da cloroquina ou questionando as vacinas como "apenas uma posição de internet" ou "uma posição como agente político na internet", feitas para mobilizar apoiadores mas que não interferiam na definição das políticas públicas.
Negação da realidade
Outro elemento dos depoimentos à CPI é a "negação da realidade observada", afirma Rachel Meneguello, professora de ciência política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Um exemplo desse comportamento, diz, é quando Pazuello declarou que nunca recebeu ordem de Bolsonaro pare rever suas decisões, apesar de haver vídeos do presidente determinando que ele cancelasse um acordo de intenção de compra de vacinas do Instituto Butantan, devido ao conflito político com o governador de São Paulo, João Doria.
"Falava-se há um tempo que esse governo fundava-se na pós-verdade, hoje está cada vez mais claro que pós-verdade é a negação da realidade", diz.
Ela menciona também o depoimento de Wajngarten, que negou que havia dito à revista Veja que a gestão do Ministério da Saúde havia sido incompetente. Durante a sessão da CPI, a revista divulgou em seu site o áudio da entrevista, no qual Wajngarten aponta "incompetência" do Ministério da Saúde.
"A participação dos depoentes na CPI tem uma certa 'sincronia da negação', e cabe aos senadores desmontar esse jogo de cena", afirma Meneguello.
Ideologia e pouco pragmatismo
Outro aspecto comum entre os depoentes identificado por Renno, especialmente em Araújo e Pazuello, foi o uso de uma retórica "ideológica" e pouco voltada à solução de problemas que deve guiar a gestão pública.
"Gestores que não atuavam de forma proativa, que aguardavam os problemas acontecer, sem tempestividade para agir", afirma.
Segundo ele, os depoimentos revelaram que tanto na pasta das Relações Exteriores quando na da Saúde havia "alguns atores muito incompetentes, com impactos devastadores em termos de vidas perdidas".
Desgaste para o governo
A expectativa de que a CPI iria provocar desgaste para o governo "vem se confirmando" até o momento, segundo Lopes, da UFC. Pesquisa Datafolha realizada em 11 e 12 de maio, depois da instalação da CPI, mostrou que a aprovação a Bolsonaro caiu seis pontos percentuais em relação ao último levantamento, em março, e está agora em 24%, pior marca desde o início do seu mandato.
Para Renno, a CPI força o governo a se colocar na defensiva e dá à comissão o controle da agenda, com efeito "imediato" no desgaste de Bolsonaro, na cristalização da avaliação negativa do governo e do fortalecimento do antibolsonarismo. "Os que tinham dubiedade ou hesitação vão tender à avaliação negativa [do presidente], e se reduz a possibilidade de incluir apoiadores além da sua base consistente e ideológica", afirma.
O núcleo bolsonarista, que ele estima em 20% da população, segue fechado em torno do presidente e não deve ser afetado pela CPI, diz Renno. "Não é um grupo desprezível, mas não assegura uma vitória eleitoral", afirma.
Meneguello ressalta que os trabalhos da comissão também influenciam a preparação para a disputa de 2022, considerando que o ex-presidente Lula tem aparecido neste momento como principal opositor a Bolsonaro. Mas ela diz ser necessário aguardar a evolução da economia nos próximos meses para verificar se haverá "reversão" na tendência de queda da popularidade do presidente.
Reação do Planalto
A estratégia de Bolsonaro para reagir à CPI é multifacetada. Em uma frente, senadores próximos ao governo tentam responsabilizar os governadores, prefeitos e outros gestores públicos nas falhas do combate à pandemia.
O Planalto já havia tentado fazer isso antes do início da CPI, e tentou incluir os governadores e prefeitos no escopo oficial da comissão. A manobra, porém, foi barrada pela Secretaria Geral da Mesa do Senado, que informou que o regimento da Casa proíbe a ampliação do objetivo da CPI para outros entes federados.
Nesta quinta, o senador Marcos Rogério (DEM-RO), próximo do presidente, mostrou durante a sessão da CPI um vídeo dos governadores Helder Barbalho (Pará), Flávio Dino (Maranhão) e Wellington Dias (Piauí) de março de 2020, no início da pandemia, em que não se opunham ao uso da cloroquina. Um gesto que deixou "muito claro como o governo está buscando articular sua contra-narrativa", diz Lopes.
Há também diversos pedidos para convocar secretários e gestores públicos estaduais para deporem na CPI, ainda não foram votados pela comissão.
Outro flanco usado pelo grupo de Bolsonaro é reativar pautas ideológicas na Câmara dos Deputados para fidelizar sua base. Em 13 de maio, a Câmara instalou uma comissão especial para analisar um projeto que torna o voto impresso obrigatório já nas próximas eleições, tema mencionado com frequência por Bolsonaro.
Na última terça, um projeto de lei que busca descriminalizar a educação domiciliar, outro tema caro à base do presidente, começou a ser discutido na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara. E, no mesmo dia, o deputado bolsonarista Diego Garcia (Podemos-RR), tumultuou uma reunião de uma comissão especial na Câmara que debate o uso medicinal da maconha, empurrando o presidente da comissão, Paulo Teixeira (PT-SP). "Há uma série de ações dialogando com pautas caras ao bolsonarismo para tentar se fortalecer no momento em que eles enfrentam desgaste na CPI", diz Lopes.
Na própria comissão, há tentativas de criar episódios para deslegitimar a CPI. No dia do depoimento de Wajngarten, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), filho do presidente, assumiu a palavra na sessão e chamou o relator, Renan Calheiros (PMDB-AL), de "vagabundo", provocando bate-boca. Tem ocorrido também a produção e distribuição de memes que associam a CPI a um "circo" repleto de "baixarias e ofensas", para serem compartilhados em redes sociais e pelo WhatsApp, segundo Renno.
Próximos depoimentos
Na próxima terça, será ouvida a secretária do Ministério da Saúde Mayra Pinheiro, a "capitã cloroquina".
Além dela, já foram aprovadas as convocações de Antônio Elcio Franco Filho, ex-secretário-executivo do Ministério da Saúde e braço direito de Pazuello na pasta, Fernando Marques, presidente da União Química, que produz a vacina Sputnik V no Brasil, Nise Yamaguchi, médica defensora do uso de cloroquina por pacientes com covid-19 que teria participado de uma reunião no Palácio do Planalto para alterar a bula do remédio, Marcellus Campelo, secretário de Saúde do Amazonas, e Dimas Covas, diretor do Butantan, entre outros nomes. As datas desses depoimentos ainda não foram confirmadas.
O presidente da CPI, Omar Aziz, afirmou que defenderá a prorrogação do trabalho da comissão para além dos 90 dias previstos.