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O processo de "russificação" numa cidade ocupada da Ucrânia

Mathias Bölinger | Hanna Sokolova-Stekh | Lewis Sanders | Julia Bayer
26 de agosto de 2023

Rendida sem disparo de um tiro, Kupyansk foi um dos primeiros territórios ucranianos a enfrentar a ocupação russa. Tortura, novos livros escolares e prédios transformados em celas são alguns dos relatos dos moradores.

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Rua coberta de neve e alguns prédios destruídos ao fundo
Outrora um centro de transporte importante, Kupyiansk agora se assemelha a uma cidade fantasmaFoto: DW

Entre as cidades ucranianas ocupadas pela Rússia, Kupyansk se destacou: foi a primeira cidade a se render, sem impor condições, quando as forças russas invadiram o país, em fevereiro de 2022.

O então prefeito da cidade, Hennadiy Matsehora, disse aos cidadãos que tomou a decisão para "evitar o sacrifício humano e a destruição da infraestrutura".

Nos canais pró-Rússia do Telegram, a transferência de poder aparentemente não violenta foi vista como um símbolo das intenções de Moscou para a Ucrânia. Kupyansk se tornaria um bastião do renascimento cultural e político russo – pelo menos essa era a mensagem do Kremlin.

Mas antes que os esforços da Rússia para erradicar a herança ucraniana pudessem começar, as forças russas precisavam, primeiro, lidar com a resistência da população que encontraram após a rendição. Não um tiroteio contra o invasor, mas uma manifestação de moradores encabeçada por Mykola Masliy, um líder da oposição local e veterano do conflito de 2014 no leste da Ucrânia.

Paradeiro misterioso de líder da resistência

Masliy agiu rapidamente. Poucos dias após a invasão, tentou organizar uma resistência armada, mas não conseguiu reunir tropas e equipamentos suficientes para conter o avanço russo. Passou, então, a resistir de outra forma: organizando uma grande manifestação, usando grupos de bate-papo locais para espalhar a mensagem. E nisso teve êxito.

Homem de jaqueta e gorro fala a pessoas que seguram bandeiras da Ucrânia
Mykola Masliy fala aos manifestantes dias depois de Kupyiansk ser entregue às forças russas. Momentos depois que esta imagem foi tirada, ele desapareceu.Foto: Bohdan Cheremskyy

No sexto dia da invasão russa, Masliy conseguiu reunir cerca de 300 pessoas na praça central da cidade, em frente à prefeitura onde a rendição havia sido anunciada.

"Eles acharam que iam fazer um treino e, em vez disso, tinham que vir para cá. Estão desmotivados. Eles querem ir para casa", disse Masliy à multidão.

Mas não foi bem assim. Os manifestantes não foram recebidos por soldados que tentavam voltar para casa. Em vez disso, as tropas russas dispararam granadas de gás lacrimogêneo contra a população que protestava e, na confusão, Masliy desapareceu. Seu paradeiro até hoje é um mistério.

Sem Masliy, os protestos diminuíram e, com isso, a resistência foi levada para a clandestinidade.

Tortura em porões de prédios oficiais

Svitlana, funcionária pública que pediu anonimato por medo de que as forças russas retornem à cidade, disse que seu chefe instruiu ela e seus colegas a usar o russo como língua de trabalho e que eles oficialmente "trabalhariam para a Rússia" a partir de então.

Quando ameaçou pedir demissão, o patrão a censurou: "isso não vai ser bom para você".

Alguns dias depois, ela foi presa e levada para um porão, onde foi interrogada e torturada. Mas Svitlana não foi a única. Logo, os centros de detenção da cidade, incluindo celas improvisadas nos porões de prédios oficiais, estavam superlotados.

Sala escura com sujeira e colchões no chão
Celas improvisadas criadas pelas forças russas em KupyianskFoto: DW

Svitlana e outros detentos relatam que sofreram espancamentos frequentes e receberam choques elétricos durante os interrogatórios.

"Quando os ocupantes entraram em um assentamento, primeiro procuraram edifícios que pudessem servir como sua sede e como instalações de detenção e câmaras de tortura", disse Oleksandr Kobylev, um policial de Kharkiv que atualmente investiga suspeitas de crimes de guerra russos.

Começa a russificação

Além da presença militar da Rússia na cidade, suas organizações e ideologia se tornaram cada vez mais presentes na vida das pessoas. Em maio de 2022, os esforços russos para desmantelar o patrimônio cultural ucraniano e substituí-lo por seu próprio estavam a todo vapor.

Reportagens da TV russa mostraram celebrações luxuosas em 9 de maio, feriado russo que comemora a vitória soviética sobre a Alemanha nazista e uma das datas políticas mais significativas na Rússia de Vladimir Putin.

Junto com as comemorações chegou um jornal gratuito. As telecomunicações foram transferidas para as redes russas, assim como os canais de televisão. Em todos os aspectos da vida, a perspectiva russa passou a ocupar a posição central.

Em junho, Kupyansk se tornou o centro dos esforços políticos e militares russos para as áreas ocupadas da região nordeste de Kharkiv.

Vitaliy Ganchev, um ex-policial ucraniano de 47 anos, foi nomeado chefe da administração civil-militar da Rússia para a região. Com uma nova administração em vigor, o prefeito de Kupyansk, Matsehora, que havia se rendido logo no início da ocupação, também foi substituído. Ele e vários funcionários ucranianos foram presos, embora não se saiba o motivo.

De acordo com testemunhas, Matsehora foi mantido em uma das celas da sede da polícia local até que as forças ucranianas recapturassem Kupyansk. Seu paradeiro atual permanece desconhecido.

Pessoa de costas, sem revelar identidade
A DW conversou com várias pessoas que relataram espancamentos e torturaFoto: DW

Treinamento de professores na Rússia

A nova administração acelerou a russificação. Símbolos ucranianos em edifícios foram removidos e marcos receberam as cores da Rússia: vermelho, branco e azul.

"Somos um só povo com a Rússia", anunciavam faixas e outdoors.

Partidos políticos russos chegaram a abrir filiais na cidade, inclusive no antigo escritório de Masliy, o veterano ucraniano desaparecido.

Um supermercado foi convertido em um centro de ajuda administrado pelo partido Rússia Unida, de Putin. Autoridades russas visitaram a cidade, prometendo alimentos, remédios e suprimentos básicos, e um desfile foi realizado em 22 de agosto para celebrar o dia oficial da bandeira da Rússia.

Durante o verão europeu de 2022, novos livros escolares russos chegaram. Em uma série de reuniões locais e conferências educacionais, os professores ucranianos receberam novos currículos para ensinar. Alguns até viajaram para a Rússia para serem treinados.

As escolas estavam equipadas com livros didáticos russos quando o novo ano letivo começou, em setembro de 2022. Apesar de alguns professores terem desistido por causa das novas regras de ensino, muitos optaram por ficar.

"Decidimos que faria menos mal às crianças se ficássemos do que se trouxessem professores da Rússia", disse Natalya Altanets, vice-diretora de uma escola.

Quando a DW conversou com ela pela primeira vez, em novembro de 2022, ela tinha acabado de ser interrogada pela segurança do Estado da Ucrânia. Ela foi detida sob suspeita de colaboração com os invasores russos.

Estátua de um homem coberta com a bandeira da Ucrânia
Em setembro de 2022, as forças ucranianas recapturaram KupyanskFoto: DW

Sombra da ocupação

A russificação terminou abruptamente quando as forças ucranianas recapturaram Kupyansk em setembro de 2022. Desde então, a polícia abriu mais de 200 casos por suspeita de colaboração.

Quase um ano depois, a ocupação ainda assombra Kupyansk, outrora um centro de transporte importante que agora se assemelha a uma cidade fantasma. Dos 27.000 habitantes antes da guerra, apenas 5.000 permanecem.

Neste mês, a Rússia intensificou seus esforços para avançar sobre Kupyansk. Os combates se intensificaram a poucos quilômetros de distância. E a destruição que o prefeito esperava evitar se rendendo, no fim, chegou mesmo assim.

Escombros de um prédio sem telhado
Escola destruída em KupyanskFoto: Sergey Bobok/AFP/Getty Images