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O que a Princesa Isabel esconde sobre a abolição

Ynae Lopes dos Santos
Ynaê Lopes dos Santos
11 de maio de 2023

Manter a Princesa Isabel como personagem principal da abolição no Brasil é não só um erro histórico, mas uma posição política muito bem delineada, afirma a colunista.

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Princesa Isabel
"Insistir na imagem da Princesa Isabel como redentora é continuar escondendo um dos momentos mais dinâmicos e interessantes da história brasileira"Foto: Sunny Celeste/Bildagentur-online/picture alliance

Há exatos 135 anos, no dia 11 de maio de 1888, o jornal O Fluminense, sediado em Niterói, anunciava que o projeto de lei que declarava extinta a escravidão no Brasil havia sido votado na Câmara e encaminhado para o Senado. De acordo com a reportagem, a nova lei traduziria a vontade nacional e, justamente por isso, havia grande expectativa sobre sua aprovação no Senado, que estava dada como certa.

Os redatores do jornal estavam antenados com a movimentação abolicionista, e suas expectativas foram atendias. Como bem sabemos, a lei que aboliu a escravidão no Brasil foi assinada dois dias depois, em 13 de maio de 1888. E assim como anunciado na notícia, a pessoa que assinaria a libertação total dos escravizados, seria mesma que, em 1871, havia assinado a lei do Ventre Livre. Eles falavam da Regente, a Princesa Isabel.

O que se seguiu naquele 13 de maio de 1888 foi uma das maiores festas cívicas do país. O Brasil, última nação das Américas a abolir a escravidão, finalmente rompia suas amarras com a nefanda escravidão, anunciando assim um novo tempo em sua história. Houve festejos, comemorações, missa campal e o também o início da construção da imagem da Princesa Isabel como a redentora dos escravizados.

Mas nem hoje, nem ontem, o Brasil foi um país para amadores. O fim da escravidão não foi bem aceito por grande parte dos proprietários rurais (sobretudo do Sudeste), fazendo com que muitos deles rompessem com a monarquia brasileira, passando a defender o movimento republicano. Quinze meses depois de abolida a escravidão, a República brasileira era decretada por meio de um golpe que contava com a participação de diferentes setores da sociedade.

Novo regime seguiu reforçando imagem da Princesa Isabel

Sem dúvidas, o Brasil entrava numa nova era. Mas sabe o que é mais curioso nisso tudo? É que mesmo em meio a um novo regime que precisava criar mecanismos para sua legitimação – se contrapondo à monarquia parlamentar que ele derrubou –, a construção da Princesa Isabel como redentora dos escravizados não foi maculada. E vocês sabem por que a República brasileira seguiu reforçando essa imagem? Porque essa escolha foi profundamente eficaz em esvaziar o que foi a abolição da escravidão no Brasil: uma conquista feita pelo abolicionismo brasileiro, o primeiro grande movimento social do Brasil.

Ao alçar a Princesa Isabel ao pedestal de redentora da Abolição, toda a luta polifônica e intensa feita pelos abolicionistas brasileiros ficava em segundo ou terceiro plano. E essa luta não seu deu apenas nas casas parlamentares do Brasil da época. Como bem pontua a reportagem de 11 de maio de 1888, o fim da escravidão era uma vontade nacional. E não havia exagero algum nessa afirmação. A imensa maioria da população brasileira não só era a favor da abolição da escravidão, como havia se organizado de diferentes formas para viabilizar o fim da nefanda instituição. Basta lembrar que em 1884, uma insurreição de jangadeiros, liderada por Chico da Matilde, havia iniciado o processo que fez do Ceará a primeira província a abolir a escravidão no Brasil.

Reduzir o fim da escravidão à figura da Princesa Isabel – reforçando a ideia mentirosa de que a abolição teria sido um presente concedido pela monarquia – é silenciar as muitas e importantes histórias que antecederam o 13 de maio, repactuando uma perspectiva racista da história brasileira que insiste em não reconhecer as agências e ações negras e populares. Não foi por acaso que no apagar das luzes de seu mandato, Jair Bolsonaro tenha criado a Ordem do Mérito Princesa Isabel, para homenagear pessoas e entidades que tenha prestados serviços notáveis. Era uma provocação feita a partir de um longo lastro da história conservadora brasileira.

Posição política

Manter a Princesa Isabel como personagem principal da abolição no Brasil é não só um erro histórico, mas uma posição política muito bem delineada. Há tempos os movimentos negros brasileiros denunciam a maneira como a abolição e a história negra do Brasil vem sendo contadas, questionando a ausência proposital de políticas públicas na inserção da população negra no mercado do trabalho assalariado – um dos jargões utilizadas pelo movimento negro era: "a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea, mas se esqueceu de assinar a carteira de trabalhos dos negros e negras do país". O questionamento foi tamanho, que os movimentos negros reivindicaram outra data a partir do qual se deveria pensar a luta negra no Brasil: 20 de novembro, data da morte de Zumbi dos Palmares.

Insistir nessa imagem da Princesa Isabel como redentora é continuar escondendo um dos momentos mais dinâmicos e interessantes da história brasileira, que contou com a ampla participação de diferentes setores sociais: o abolicionismo. E aqui não se trata de nenhuma crítica direta à Princesa Isabel – ainda que a sua figura precise ser estudada na sua complexidade e limitações – mas do necessário ganho de consciência que o uso deliberado dessa pretensa heroína do Brasil é um ótimo exemplo de como nossa história foi e segue sendo manipulada por grupos específicos, que defendem interesses específicos.

Que o 13 de maio possa ser uma data na qual possamos conhecer e celebrar os inúmeros comícios abolicionistas que arrastavam multidões em diferentes partes do Brasil, o uso dos Teatros como espaços de propagação das ideias abolicionistas, a tecitura de "rede subterrâneas de solidariedade" que permitiram a fuga de centenas de escravizados às vésperas da abolição, e as ações incansáveis de abolicionistas do peso de  José do Patrocínio, Luiza Gama, Vicente de Souza, Ferreira de Menezes, Manoel Querino, Chico da Matilde e Maria Firmina dos Reis.

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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.

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Ynaê Lopes dos Santos defende que não há como entender o Brasil e as Américas sem analisar a estrutura racial que edifica essas localidades; e que a educação tem um papel fundamental na luta antirracista.