O que explica a queda dos homicídios em São Paulo
27 de agosto de 2024Há um critério objetivo da Organização Mundial de Saúde (OMS) que ilustra bem a truculenta violência que é viver em um local com altas taxas de assassinatos. Se ocorrem mais de dez mortes do tipo por 100 mil habitantes por ano, a questão é tratada como uma epidemia de homicídios. Na outra ponta da tabela está aquele local considerado "ideal" — menos de um homicídio a cada 100 mil habitantes por ano.
Trazendo a lupa dos números para o estado mais rico e mais populoso do Brasil, São Paulo tinha um cenário praticamente de guerra duas décadas atrás. De acordo com dados da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP), em 2001 foram registrados 35 homicídios por 100 mil habitantes. Alguma coisa precisava ser feita. Ou melhor: muita coisa junta precisava ser feita.
E foram. A julgar pelos números, em São Paulo, o que era uma pandemia completamente descontrolada se tornou algo no limiar da epidemia em 2015 — com dez homicídios registrados a cada 100 mil habitantes — e segue caindo. Dados mais recentes indicam que no último balanço de 12 meses entre junho de 2023 a maio de 2024, foram 5,91 assassinatos por 100 mil habitantes. No consolidado do ano passado, o registro ficou em 6,12 — uma oscilação um pouco negativa frente aos 5,66 de 2022, o melhor ano da série histórica.
Analisar o cenário é essencial para, ao compreender o fenômeno, trazer ferramentas para que poder público e sociedade civil possam atuar com o objetivo de tornar o estado ainda mais seguro. As seis mortes a cada 100 mil habitantes por ano ocorridas hoje tornam São Paulo muito melhor do que as 35 do começo do século. Mas a região está muito longe de ser um oásis de tranquilidade como a Eslovênia, a Suíça e o Japão — com índices anuais inferiores a um assassinato por 100 mil habitantes, segundo dados do Banco Mundial — ou mesmo a Alemanha, a Itália e Portugal — onde o número está entre 1 e 2.
Múltiplos fatores
Em recente dissertação de mestrado defendida na Universidade de São Paulo, o especialista em segurança pública Bruno de Freitas Alvarenga buscou explicar essa redução histórica. Ele, que é capitão da Polícia Militar de São Paulo, atribui a melhoria a três fatores principais: melhores políticas públicas, sobretudo nas áreas periféricas; reforço no policiamento das regiões mais vulneráveis; e envelhecimento da população — já que historicamente há mais casos de jovens do que de idosos envolvidos em homicídios.
"Da mesma forma que o aumento da violência não acontece por só uma circunstância, a redução também tem diversos motivos", pondera o jurista Marcelo Crespo, doutor em direito penal e coordenador do curso de direito na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).
Ele elenca como fundamentais o aumento da força policial "em regiões mais críticas", "reforço da inteligência policial" e "melhoria das qualidades sociais gerais". Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de São Paulo cresceu muito nesse intervalo de tempo: saltou de 0,702, em 2001, para 0,806, em 2021.
"Os fatores, quando tratamos da redução de homicídios, são sempre multicausais", concorda o jornalista, economista e cientista político Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP). Autor de, entre outros livros, A Guerra: A Ascensão do PCC e o Mundo do Crime no Brasil, Paes Manso traz uma explicação que, se não é consenso entre especialistas, têm ganhado força nos últimos anos: o próprio crime atuando como controlador e limitador de homicídios.
Para entender esse fenômeno é preciso olhar para o crescimento do Primeiro Comando da Capital, a facção criminosa que domina os presídios paulistas e é mais conhecida pelo acrônimo PCC.
O próprio crime atuando contra o crime
A facção surgiu em 1993, nos estertores do famigerado Massacre do Carandiru, ocorrido no ano anterior, em que forças policiais paulistas mataram 111 presos naquela que se tornaria uma das maiores chacinas do país. Espécie de sindicato do crime, o grupo ganharia força a partir de 2001.
"Foi quando os telefones celulares ficaram mais populares e a comunicação dentro dos presídios melhorou", conta Paes Manso. Segundo o pesquisador, uma nova gestão do PCC criou um código de regras impondo o controle de comportamentos na bandidagem. "A ideia era tronar o crime mais profissional, menos conflituoso, com mais previsibilidade, e isso transformou o mercado de drogas em São Paulo e, em seguida, no Brasil", diz o especialista.
A ascensão da facção criminosa no contexto brasileiro coincide com a queda dos homicídios, isto é fato. "É possível entender que isso acontece [a redução dos assassinatos], sim, pelo PCC. Mas não por motivos altruístas, e sim porque há outros interesses em jogo", afirma Crespo. "O crime organizado evita homicídios não porque tem bom coração, mas justamente porque não quer que uma intervenção policial acabe atrapalhando outro tipo de negócio [criminal] que não depende necessariamente do homicídio."
Paes Manso qualifica o PCC como "uma agência reguladora do mercado do crime". "É uma espécie de governo desse mundo ilegal bilionário que é o mercado das drogas, que precisava de uma regulamentação para dar mais lucro, ter mais previsibilidade. A facção definiu regras que punem comportamentos desviantes", contextualiza.
Alvarenga é reticente quanto a essa teoria. Ele reconhece que "a atuação hegemônica do PCC no estado pode ter sido um dos fatores que operaram para a estabilidade e manutenção [dos números] após o ano de 2006", mas argumenta que, na ocasião, "as taxas de homicídios em São Paulo já se encontravam baixas para os padrões nacionais e em tendência de queda". Em 2006, eram 16 homicídios por 100 mil pessoas, menos da metade do que cinco anos antes.
Em seu estudo, ele desconstrói essa narrativa dizendo que não é possível "observar influência relevante do PCC na taxa de homicídios" paulista. O capitão acrescenta que "a grande maioria dos homicídios em São Paulo são fruto de ‘conflitos interpessoais banais' e não por ‘disputa por domínio territorial ou de mercados ilícitos". "Aparentemente, a hegemonia do PCC teria potencial para diminuir os conflitos entre criminosos, com pouca ou nenhuma influência no cotidiano daqueles que estão fora do ‘mundo do crime'", salienta.
Para Alvarenga, outro fator a ser considerado é que a facção "jamais abandonou seus métodos violentos para impor suas regras e o controle dos mercados ilícitos em que opera". "Acho interessante considerar a hipótese de que o PCC apenas monopolizou a prática dos homicídios", pondera.
Ex-secretário nacional de Segurança Pública, conselheiro do Instituto Brasileiro de Segurança e Justiça e coronel reformado da Polícia Militar de São Paulo, o consultor de segurança José Vicente da Silva Filho é incisivamente contra a teoria que atribui ao PCC a redução dos homicídios. "Essa ideia é uma narrativa inverossímil e inconsequente, mas muitos gostam dela porque não acreditam que a polícia possa ser bem-sucedida na contenção da violência", diz.
Inteligência policial e tecnologia
Para Silva Filho, os méritos dos números atuais são do "esforço policial". Ele conta que na virada dos anos 2000 houve uma mudança na cúpula da Polícia Militar de São Paulo, em oposição à mentalidade reinante em episódios como o Massacre do Carandiru e caso Favela Naval, em que a Rede Globo mostrou, em 1997, militares extorquindo, espancando e executando moradores de uma favela de Diadema, na Grande São Paulo.
"A nova geração de coronéis achou por bem dar uma repaginada na polícia, sair do ranço de ser incompetente e violenta. Aí começou um novo paradigma", contextualiza.
Entre os pilares dessa nova fase estava a priorização do policiamento comunitário, em que os militares criam uma aproximação com a população. Outro ponto foi o maior investimento em inteligência. Com a ajuda da tecnologia, a operação militar foi redesenhada, com contingentes mobilizados mais intensamente em regiões com maior ocorrência de crimes.
O coronel coloca nesse conjunto de medidas uma reformulação na área de treinamento e preparação dos policiais. Antes, o treinamento de admissão era de apenas um ano — agora são dois. "E um capitão para ser promovido a major tem de ter mestrado. Para chegar a coronel, é preciso doutorado", conta.
Pesquisadores como Paes Manso não fecham os olhos para outros fatores, é claro. Ele lembra que melhorar a investigação dos casos ocorridos, diminuindo a sensação de impunidade, também é necessário. Outro ponto é reduzir as armas em circulação. "Além do crime organizado, homicídios ocorrem por brigas, no calor do momento", comenta. Sem armamento de fogo disponível, as chances dessas desinteligências acabarem em mortes são menores.
Para o capitão Alvarenga, no melhor dos cenários os números paulistas devem chegar a patamares entre 1 e 2 homicídios por 100 mil habitantes, se o conjunto de medidas atuais for continuado e melhorado. "[Seriam estatísticas] muito próximas das observadas no oeste da Europa", compara ele.
"A redução de homicídios só vai seguir acontecendo a partir de medidas integradas, transdisciplinares, de combate adequado à criminalidade", defende Crespo. "É preciso mexer no sistema de justiça, mexer com parcerias estratégicas, investir em tecnologia e pessoas."
Uma lição aprendida nesse período é que não é com violência policial — como a vista em episódios dos anos 1990 — que se combate a violência criminosa. Esse sucesso na redução de letalidade policial, no entanto, vem enfrentando retrocessos no último ano. Dados do Ministério Público paulista divulgados em julho mostram um aumento da violência policial. O número de pessoas mortas pela Polícia Militar no estado no primeiro semestre deste ano foi mais do que o dobro do mesmo período do ano passado — saltou de 154 para 344.
Nesse sentido, o coronel Silva Filho critica o momento atual. "Às vezes, como no governo de hoje, há uma recaída, de gente que acha que uma forma de reduzir a violência é fazendo a polícia ser cada vez mais violenta", critica. "Não é com mais força que se melhora a segurança. É com mais inteligência."