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O que Ucrânia sob invasão russa espera da Alemanha

8 de maio de 2022

Ucranianos se ressentem de reticência alemã em impor sanções a Rússia mesmo após claros precedentes de agressão. Ignorar Ucrânia como mero "quintal" de Moscou é ferida histórica – que talvez a União Europeia possa curar.

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Soldado diante de casas em ruínas
Ruínas no leste ucraniano: enquanto Alemanha luta com seus fantasmas históricos, destruição prossegueFoto: Alexander Reka/TASS/IMAGO

Ao telefone com Andrey Kurkov: o autor de best-sellers de Kiev tem sempre uma boa antena para a visão do Leste Europeu em relação à Alemanha. Em entrevista à DW, ele registra que em suas conversas dos últimos três meses "tem havido muitas emoções antigermânicas".

Escrevendo para os periódicos The Economist e The New Yorker, entre outros, o presidente da associação de escritores PEN na Ucrânia é considerado nos Estados Unidos um dos intelectuais que melhor explicam o país europeu oriental. Em seu livro Ukraine Diaries: Dispatches from Kiev (Diários da Ucrânia: Despachos de Kiev), de 2014, ele relata minuciosamente os acontecimentos da revolução pró-europeia do Maidan, a Praça da Independência.

"Angela Merkel é abertamente citada como culpada", explica. A ex-chanceler federal alemã, da conservadora União Democrata Cristã (CDU) começou a "fazer ainda mais negócios com Vladimir Putin" depois que o presidente russo anexou ilegalmente a península ucraniana da Crimeia, em violação explícita do direito internacional.

Além disso, "depois do começo da guerra no Donbass", Merkel não abandonou a construção do gasoduto teuto-russo Nord Stream 2, acrescenta o autor, que em parte vive em Londres e atualmente trabalha a partir de Copenhague.

Tendo crescido numa família de idioma russo, ele ainda vivenciou em Kiev a agressão militar da Rússia contra seu país. Sua esposa e filhos estão espalhados pela Ucrânia. Um filho presta assistência humanitária na cidade da minoria húngara Uzhgorod, na fronteira com a Hungria, para onde escaparam numerosos habitantes das regiões em guerra.

Autor ucraniano Andrey Kurkov
Autor Andrey Kurkov cresceu em família russófona e vivenciou o começo da invasão russa em KievFoto: Elmar Kremser/SVEN SIMON/picture alliance

Mudança de paradigma incompleta na política externa alemã

É guerra na Europa e, desde a invasão pela Rússia, a Ucrânia se encontra em plena luta pela sobrevivência. Pouco após o começo da agressão militar, em discurso no parlamento de Berlim, o chanceler federal alemão, Olaf Scholz, conclamou a uma "zeitenwende" (mudança de paradigma, literalmente "virada de época").

Nessa revisão fundamental da política externa nacional, a Alemanha deveria investir de forma maciça em suas Forças Armadas; reverter o entrelaçamento econômico com a Rússia, até então vigente; além de boicotar o país agressor.

E, no entanto, há semanas chovem críticas da Ucrânia, sobretudo por a Alemanha seguir importando gigantescos volumes de matéria-prima russa e, consequentemente, transferindo grandes somas a Moscou.

Em seguida à evacuação de mais de 100 civis da usina siderúrgica de Mariupol, no começo de maio, a vice-primeira-ministra ucraniana, Irina Vereshchuk, declarou: "Temos o direito de ser emocionais. Temos o direito de exigir mais – mais armas, mais sanções [...] Os senhores perdem dinheiro, enquanto nós perdemos vidas!"

Relação Berlim-Moscou baseada em premissas falsas

Cada vez fica mais claro que a reorientação da política externa alemã é um processo doloroso, que transcorre paralelamente ao destino da Ucrânia e ao desdobramento da atual guerra. E isso tem muito a ver com crítica à política alemã desde 2014, após a revolução pró-europeia da Maidan, a Praça da Independência de Kiev, e dos ataques pela Rússia à soberania do país nos termos do direito internacional.

Segundo a especialista no Leste Europeu Margarete Klein, do think tank Instituto Alemão de Assuntos Internacionais e de Segurança (SWP), que também aconselha o governo em Berlim, "algo já mudou, sim, em comparação com 2014, apesar do Nord Stream 2".

"Mas não houve nenhuma mudança de paradigma basilar da política alemã para com a Rússia. Esta continua se baseando numa série de premissas não sustentáveis, como a de que é possível separar a cooperação econômica do conflito na política de segurança."

Ou, ainda: "que uma ordem de segurança europeia só pode ser criada com a Rússia", observa Klein, em cuja opinião "zeitwende" significaria "revisar essas premissas básicas, de fato entender que cooperação econômica também pode ter efeitos sobre a política de segurança".

Chefe de governo alemão, Olaf Scholz, entre líderes verde Robert Habeck e liberal Christian Lindner
Chefe de governo alemão, Olaf Scholz, entre líderes verde Robert Habeck e liberal Christian Lindner: procurando uma política comum para o RússiaFoto: Kay Nietfeld/dpa/picture alliance

Europa "russocêntrica" cega para Ucrânia

Quase todos os países da Europa Central e Oriental, inclusive a Ucrânia, vinham há tempos advertindo a Alemanha de que ela se tornava chantageável ao ficar  dependente da energia da Rússia. Contudo, os ucranianos foram simplesmente ignorados, admite, com autocrítica, o historiador alemão Karl Schlögel, especializado no Leste Europeu.

"Quer dizer que toda a percepção europeia – e isso valia também para mim e para muitos da minha geração – é ´russocêntrica'. Isso está seguramente relacionado ao fato de a Ucrânia ter sido sempre vista como parte, como província, como quintal, por assim dizer, da União Soviética, e anteriormente, do Império Russo. Ela não era absolutamente vista como um sujeito independente, como nação, povo."

Isso explicaria, pelo menos em parte, o rigor da crítica à política externa alemã partindo da Ucrânia, pois: quem é que está disposto a aceitar a própria inexistência? Esse fator é especialmente grave no caso da Alemanha, que durante a Segunda Guerra Mundial invadiu seus vizinhos europeus e exterminou sistematicamente 6 milhões de judeus.

"Até o último momento, o principal palco dos crimes alemães no Leste – ou seja, Ucrânia e Belarus – não estava absolutamente no mapa", constata o especialista em Europa Oriental Schlögel.

No entanto, pelo menos desde 1995 o grande público alemão tem acesso aos dados sobre as atrocidades das Forças Armadas nazistas na Ucrânia, através da exposição itinerante Guerra de extermínio, crimes da Wehrmacht de 1941 a 1944, do Instituto de Pesquisa Social de Hamburgo.

União Europeia como saída para Ucrânia

"Na verdade é monstruoso ser necessária uma nova guerra para que a Ucrânia retorne a nossa memória ou nosso conhecimento, ao nosso horizonte, como campo de batalha, por assim dizer. Na verdade isso é bem dramático", lamenta Karl Schlögel.

Agora "só se pode torcer" que, ao contrário de 2014 – depois da bem-sucedida revolução da Euromaidan e do começo da guerra russa no Leste ucraniano –, as necessidades da Ucrânia não voltem a sumir da agenda europeia. A guerra da Rússia, "não começou agora, em fevereiro", lembra o historiador: desde 2014 ela faz milhares de vítimas no país sob agressão, gerando fuga e expulsão.

Na visão de Andrey Kurkov existe, de fato, uma via de saída para essas feridas teuto-ucranianas, pois no momento cai para segundo plano a lembrança do regime de violência alemão na Ucrânia. Em conversas em seu país, "fala-se muito menos da Segunda Guerra Mundial, registra o autor: agora, quando "se fala de fascistas, se está referindo à Rússia, e não à Alemanha nazista".

Os ucranianos olham em direção da Alemanha e sua política externa sobretudo por percebê-la como "principal país da União Europeia", da qual eles desejam se tornar membros.

Para as elites de Kiev está claro que uma filiação à Otan demoraria muito mais: "A Europa é uma grande esperança, e também um fator importante para a independência do país", frisa Kurkov. "Europa significa segurança para a Ucrânia."