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O teatro como palco da interculturalidade

Simone de Mello19 de abril de 2002

Entrevista com a diretora de teatro Annette Ramerhoven, alemã que estudou em São Paulo e atua nos dois países.

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A diretora alemã de teatro Annette Ramerhoven, residente em São Paulo, acabou de estrear em Stuttgart a peça Por que a Criança Cozinha na Polenta, baseada no romance da suíça-romena Aglaja Veteranyi. A adaptação teatral, escrita pela própria diretora, enfoca o drama de uma menina proveniente de uma família de circo que foge do Leste Europeu na esperança de conquistar o Ocidente e fracassa na tentativa de constituir uma identidade cultural própria.

O trânsito entre diferentes culturas também marca a trajetória profissional de Annette Ramerhoven. Formada pela Escola de Artes Dramáticas da Universidade de São Paulo, a alemã nascida em Colônia e crescida em Munique foi assistente de direção do coreógrafo austríaco Johann Kresnik durante anos e produtora cultural na Casa das Culturas do Mundo, em Berlim. Entre suas encenações, destacam-se Olga Benario (Bremen, 1994) e No Alvo (São Paulo, 1996), de Thomas Bernhard, montada num casarão da Avenida Paulista. Numa entrevista exclusiva à Deutsche Welle, a autora e diretora fala sobre o desafio e o prazer de trabalhar com teatro no Brasil e sobre seus novos planos para o cenário cultural paulistano.

DW:

Em comparação com a Alemanha, não é tão fácil trabalhar com teatro no Brasil, pela falta de apoio institucional sistemático. Mesmo assim, você optou por atuar como diretora em São Paulo, onde voltou a morar há alguns meses. Quais as grandes recompensas de trabalhar com teatro no Brasil?

Ramerhoven:

Em primeiro lugar, a urgência de se fazer um teatro diferente no Brasil. Em função das limitações de caráter econômico, o desenvolvimento do teatro no Brasil deixa a desejar, em comparação com o Primeiro Mundo. É claro que há projetos específicos muito importantes, singulares, mas de um modo geral existe uma lacuna que precisa ser preenchida. Existe a necessidade de levar textos de fora e também de estimular a própria dramaturgia brasileira, o que já está acontecendo neste momento. Quanto ao trabalho de montagem, é importante ousar na concepção, na atualização da dramaturgia clássica e de vanguarda e também num trabalho contínuo de teatro. A segunda recompensa é a grande criatividade. O brasileiro ama o teatro, tanto ir ao teatro, como fazer teatro. A produção de São Paulo, por exemplo, é imensa. Basta olhar a quantidade de salas, de grupos e o sacrifício que o pessoal de teatro faz para poder realizar alguma coisa. Além disso, há uma infinidade de temas e assuntos, tudo o que o próprio povo brasileiro traz quanto ao material, toda essa riqueza, a boca do povo brasileiro, as situações mais absurdas (a velha história de que o Brasil é um país surrealista...). Portanto, botando a mão nessa massa e se aproveitando de uma dramaturgia já existente, acho que o Brasil é um prato cheio. Não tem outro igual.

Quais os projetos de teatro que você viabilizou desde que voltou a residir no Brasil?

O primeiro foi uma peça com um grupo de periferia hip-hop, uma meninada de classe média baixa, um grupo muito sério e profissional quanto à qualidade de trabalho. A gente conseguiu integrar a dança, o hip-hop deles e uma linguagem cênica que faz um retrato da periferia de São Paulo. O nome do espetáculo é Esperanduquê. Começamos com um romance que fez muito sucesso, o Capão Pecado, do Ferrez, da turma dos Racionais. São textos lindos, mas nós acabamos fazendo uma versão própria com textos do Taíde.

Você acabou de estrear uma peça em Stuttgart, Por que a Criança cozinha na Polenta, baseada no romance da suíça-romena Aglaja Veteranyi, que também trata de interculturalidade. O elenco com que você trabalhou também é internacional. Você diria que a interculturalidade é um motor do seu teatro?

Eu não diria que seja o motor, pois com certeza o que me move são conflitos mais existenciais. Mas ao trabalhar com pessoas de outra cultura, é possível expressar o mesmo tema de formas diferentes. Muitas histórias só podem ser contadas pelo fato de as pessoas serem de outra cultura. Acho que isso já se tornou um fator importante no meu trabalho.

Como é trabalhar com atores brasileiros?

O ator brasileiro é de uma generosidade, de uma criatividade, de uma flexibilidade muito grandes. O físico, nem se fala: todo brasileiro dança e canta, o que já é uma grande coisa. Por outro lado, um ator alemão que passou quatro anos numa escola superior de teatro já tem uma grande consciência de como lidar com textos clássicos, de como interiorizar a emoção. Lembrando que a novela de TV é muitas vezes o ponto de partida de um ator brasileiro normal, é muito difícil levá-lo a trabalhar o papel de forma mais contida.

Além de diretora, você também exerce a função de multiplicadora cultural, procurando incentivar o intercâmbio teatral entre o Brasil e a Alemanha. Quais os seus novos projetos neste sentido?

Imagens da Cidade e o Palco

é um projeto de oficinas e exposição que pesquisa a relação entre cidade e palco. Trata-se de investigar como o espaço urbano, em especial uma megalópole como São Paulo, influencia o teatro, quanto ao cenário, ao ritmo, à percepção. Tudo isso através do olhar do cenógrafo. Conseguimos planejar oficinas de três cenógrafos alemães importantes em São Paulo: Anna Viebrock, que trabalha com o diretor Christoph Marthaler, o Bert Neumann, cenógrafo do Castorf, e a Penelope Wehrli, uma artista multimídia. O resultado destas oficinas vai ser mostrado numa exposição.

Você também é fundadora da Associação

TheaterInverso. Qual a meta desta associação?

É uma associação de incentivo a projetos cênicos interculturais. Surgiu da necessidade de viabilizar projetos de pessoas de diversas culturas, residentes na Alemanha e ligadas ao teatro, ao teatro-dança ou ao teatro musical. A relação entre essas pessoas já gerou novas cooperações de dramaturgia, de produção. E já dá para perceber que o trabalho individual cresceu através deste contato mais intenso.

Quais as próximas peças que você pretende montar no Brasil?

Tenho um projeto de teatro jovem que junta o meu grupo de dança hip-hop, com a peça Esperanduquê, e duas outras montagens: Disco Pigs, de Enda Walsh, um autor irlandês que estourou na Europa, a história de dois adolescentes simbióticos, agressivos, loucos, e Deus é um DJ, de Falk Richter, um texto alemão que discute a nossa existência sob o efeito da mídia, como a gente se coloca no jogo entre a autenticidade e a ilusão criada pela mídia. Ambas estão sendo traduzidas para o português pelo escritor Marcelo Paiva. É um programa de peças voltado para um público jovem, algo pouco usual no Brasil.