Ofensas à China por Bolsonaro são jogo perigoso
11 de novembro de 2020Caros brasileiros,
É revelador como palavras e ações podem divergir. Quando o assunto é China, o Brasil e os Estados Unidos são exemplos gritantes disso. Os governos de ambos países não se cansam de agredir Pequim.
O exemplo mais recente veio do presidente Jair Bolsonaro. Por incrível que parece, ele festejou a suspensão dos testes da vacina do laboratório chinês Sinovac após o registro de um "evento adverso" com um voluntário.
"Mais uma que Jair Bolsonaro ganha", ele escreveu . O ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta ficou estarrecido com esse desleixo com a vida humana. "Nunca vi comemorar que não vamos ter remédio como se fosse um gol, isso é insano", comentou.
Bolsonaro e Trump já estão celebrando a inimizade com a China há algum tempo. Trump quis combater o deficit comercial com a China, que entre 2014 e 2019 ficou oscilando num nível recorde de 345 bilhões de dólares.
Faz dois anos, na cúpula da Cooperação Econômica Ásia-Pacífico (Apec) de novembro de 2018, pela primeira vez na história não houve um comunicado comum dos 21 estados-membros da organização. A razão era a briga comercial entra a China e os Estados Unidos.
Desde o surto da pandemia, Trump insistiu que a China era responsável pela proliferação do coronavírus. Em abril deste ano, numa das entrevistas coletivas diárias à imprensa, ele acusou a China de não ter controlado o vírus, e por isso "o mundo inteiro está sofrendo agora".
Mas enquanto o "vírus da China", como Trump chamava o coronavírus, se alastrava pelos Estados Unidos, na China a pandemia foi controlada com medidas rigorosas. Segundo a Universidade Johns Hopkins, desde janeiro deste ano foram notificadas mais de 10 milhões de infeções e mais de 200 mil mortos nos EUA. No China, 91 mil pessoas se infectaram, e 4.700 pessoas morreram por causa do novo coronavírus.
Chama atenção o fato de que os dois países que tanto agridem a China são também dois países que tanto dependem dela. Para os EUA, a China é o segundo maior parceiro comercial, atrás só do México, conforme a estatística do United States Census.
Mesmo depois da "punição" ordenada por Trump de bloquear os apps chineses TikTok e WeChat nos EUA, o governo americano não mexeu no acordo comercial com a China, assinado em janeiro deste ano. O setor do agrobusiness e os bancos americanos tinham advertido o presidente para não deteriorar ainda mais o relacionamento entre os dois países.
Para o Brasil, a China continua sendo o maior parceiro comercial. Depois que o comércio com os EUA recuou 25% entre janeiro e setembro deste ano em relação ao mesmo período do ano anterior, a relação comercial com Pequim ficou ainda mais importante para as vendas dos produtos brasileiros.
Em retrospectiva, o China-Bashing não salvou a cabeça do Trump. Nas eleições, parece que uma maioria dos americanos não estava convencida da "culpa" de Pequim pela pandemia. Pelo contrário, acharam que Trump fracassou no combate ao "china vírus". Já Bolsonaro por enquanto não parece ligar para isso. Ele continua firme na inimizade com Pequim.
Já em outubro, ele desautorizou o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, que tinha anunciado a compra de 46 milhões de doses da Coronavac, vacina contra o coronavírus da empresa chinesa Sinovac a ser produzida no Brasil em parceria com o Instituto Butantan. No Facebook, ele afirmava que a vacina "não será comprada".
A recente comemoração da suspensão dos estudos clínicos com a vacina chinesa foi o cúmulo desse China-Bashing made in Brazil. É um jogo perigoso e nojento. Em primeiro lugar, porque torcer contra avanços de pesquisas científicas cruciais para saúde da população é um ato impatriótico, anticristão e desumano. E é mais uma quebra de decoro presidencial difícil de aguentar.
Segundo, porque o governo brasileiro arrisca retaliações de um país que, além de ser o seu maior parceiro comercial, também é um dos únicos com crescimento econômico nessa fase de recessão mundial causada pela pandemia. Se Pequim resolvesse comprar mais soja dos EUA, a recuperação econômica do Brasil estaria seriamente ameaçada.
It's the economy, stupid!
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Astrid Prange de Oliveira foi para o Rio de Janeiro solteira. De lá, escreveu por oito anos para o diário taz, de Berlim, e outros jornais e rádios. Voltou à Alemanha com uma família carioca e, por isso, considera o Rio sua segunda casa. Hoje ela escreve sobre o Brasil e a América Latina para a Deutsche Welle. Siga a jornalista no Twitter @aposylt e no astridprange.de.