OMS e Brasil: longo histórico de parcerias em momentos-chave
7 de abril de 2023A aplicação prática dos conceitos de globalização sempre chega ao seu inevitável máximo quando o tema é saúde – a pandemia de covid-19 é um claro exemplo de como, nesse aspecto, não adiantava olhar só para o seu quintal; as decisões precisavam ser, mais ou menos, tomadas em conjunto, ou os resultados seriam pífios.
Pois desde que foi criada, há 75 anos, a Organização Mundial da Saúde (OMS) sempre esteve junto ao Brasil em iniciativas sanitárias. Ao mesmo tempo, o país colaborou com a instituição, seja dando seus exemplos, seja apresentando os desafios peculiares a uma nação de dimensões continentais, em desenvolvimento e com ocorrências de tantas doenças tropicais.
A OMS acompanhou de perto, por exemplo, a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), o maior sistema de saúde público do mundo, em 1990. E, de lá para cá, não foram poucas vezes que o modelo foi tratado como um bom exemplo de acesso universal a serviços de saúde.
"[Houve apoio da OMS] na própria implantação do SUS, que se tornou referência para a atuação no ambiente internacional", afirma o médico sanitarista Claudio Maierovitch, pesquisador na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e ex-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Casos emblemáticos de parceria
Em aspectos pontuais, especialistas ouvidos pela DW Brasil apontaram como momentos-chave as campanhas de vacinação. Com oferta de 45 diferentes imunobiológicos para a população, o Programa Nacional de Vacinação brasileiro é considerado um dos maiores, mais abrangentes e mais capilarizados do mundo.
Maierovitch ressalta que houve apoio da OMS e, particularmente, "de seu braço no continente, a Organização Panamericana da Saúde [Opas], para importantes iniciativas de saúde pública e resposta a emergências".
"Podemos lembrar da erradicação mundial da varíola, da eliminação da poliomielite, da criação e da expansão do Programa Nacional de Imunizações", enumera o médico, lembrando que em todos esses casos a conduta brasileira se tornou exemplo mundial.
No Brasil, o último caso de varíola foi registrado em 1971 – a OMS certificou a erradicação da doença em território nacional dois anos depois. O Programa Nacional de Imunizações foi criado em 1975. Em 1994, o organismo internacional confirmou também o fim da poliomielite no país.
Também foi muito emblemática a parceria entre Brasil e OMS durante a disseminação do vírus zika, a partir de 2015. "Quando houve uma emergência de saúde pública de importância internacional motivada pela epidemia de microcefalia relacionada à infecção pelo vírus zika, a OMS nos apoiou na resposta nacional e obteve daqui os principais subsídios para sua atuação no mundo", recorda Maierovitch, lembrando que a então diretora da entidade, a médica chinesa Margaret Chan, esteve pessoalmente no Brasil naquela ocasião.
Em 2013, o governo federal brasileiro, então sob a presidência de Dilma Rousseff, contou com a intermediação da Opas e da OMS para a concepção e o lançamento do programa Mais Médicos, que visava suprir a carência de profissionais da saúde em municípios do interior do país com a "importação" de médicos de outros países, sobretudo cubanos. O convênio firmado com Cuba foi intermediado pela Opas.
Rusgas durante a gestão Bolsonaro
Ao longo da pandemia de covid-19, a postura negacionista adotada pelo então presidente Jair Bolsonaro e a falta de um planejamento nacional unificado de combate chegaram a ser alvo de críticas da OMS. Em março de 2021, quando o país vivia um momento crítico de mortes pela doença, Bolsonaro afirmou que era preciso parar "de mimimi". Diretor-geral da entidade, o biólogo etíope Tedros Adhanom rebateu que a situação no Brasil era muito preocupante e que a covid precisava ser levada a sério.
Foram muitas as rusgas. Bolsonaro chegou a afirmar que a OMS havia "perdido a credibilidade" e, em junho de 2020, declarou que o país poderia inclusive deixar de ser associado ao organismo. "O Brasil vai pensar nisso tão logo acabe esse problema da pandemia, a gente vai pensar seriamente se sai ou não, porque não transmite mais confiança", afirmou o então presidente, na ocasião.
No entendimento do historiador Leonardo Dallacqua de Carvalho, doutor em história das ciências e saúde da Casa de Oswaldo Cruz (associada à Fiocruz) e professor na Universidade Estadual do Maranhão (Uema), os frutos dessa conduta vêm sendo colhidos agora.
"Parceria com os países é fundamental para que organizações como a OMS se justifiquem e tenham resultados", comenta ele. "Presenciamos o desastre no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, que em meio à pandemia de covid-19 promoveu discursos antivacinação e negligenciou, em diferentes momentos, o acesso à saúde pública e às orientações da OMS. A consequência, por exemplo, colocou o Brasil no mapa da paralisia infantil."
A cobertura vacinal brasileira é a menor dos últimos dez anos. Entre as crianças com menos de 1 ano, 30% não estão vacinadas contra a poliomielite, fazendo da volta da então erradicada doença uma ameaça real.
Não à toa, recentemente e com o apoio da OMS, foi lançada a campanha Vacina Mais. "A parceria incentivou uma ampliação da cobertura vacinal e a importância do SUS para atingir essa finalidade", diz Carvalho, considerando isso necessário "após um período sombrio em termos de saúde pública".
Brasil na fundação da OMS
Se há uma relação de mão dupla entre Brasil e OMS, vale ressaltar que o DNA brasileiro está presente desde a concepção da entidade. Afinal, ela foi criada por ideia de um médico paulista, Geraldo Horácio de Paula Souza (1889-1951). "O Brasil, desde antes da criação da OMS, tem sido protagonista importante em sua história", pontua Maierovitch.
Para a jurista Gracemerce Camboim, professora na Faculdade Presbiteriana Mackenzie de Brasília e pesquisadora na Universidade de Brasília (UnB), "a grandiosidade e cooperação mútua" existe desde "a proposta de criação" do organismo.
"As impressões digitais brasileiras são visíveis na concepção da OMS, antecedida pela apresentação de proposta do sanitarista brasileiro Geraldo Paula Souza para a criação de uma organização internacional de saúde, uma vez que o tema não fora contemplado na Constituição da ONU", acrescenta o médico. "A OMS tem sido símbolo de como o multilateralismo e a cooperação podem contribuir para melhorar as condições de vida dos povos e mitigar o sofrimento relacionado às doença e agravos."
O historiador Carvalho conta que a ideia da instituição nasceu de diálogo entre o brasileiro Souza e o diplomata chinês Szeming Sze (1908-1998). "São figuras centrais para a criação de um órgão internacional dedicado à saúde", diz ele.
"Paula Souza tinha ampla experiência na área da saúde pública. Foi o primeiro brasileiro a se especializar na Universidade Johns Hopkins [nos Estados Unidos]. Foi ele quem fundou o instituto que daria origem à Faculdade de Saúde Pública de São Paulo, sendo seu primeiro diretor", conta a historiadora Christiane Maria Cruz de Souza, doutora em História das Ciências da Saúde e autora do livro A gripe espanhola na Bahia. "Teve um grande protagonismo neste campo da saúde pública nacional e internacional, fundando a Sociedade Brasileira de Higiene e dirigindo, também, o serviço sanitário paulista."
A historiadora ressalta que "o protagonismo dos brasileiros" no período inicial da OMS foi grande. A organização foi dirigida pelo médico carioca Marcolino Gomes Candau (1911-1983) por 20 anos. "Ele promoveu grandes campanhas contra doenças infectocontagiosas como a malária e a varíola", cita Souza.
"Ele utilizou habilidades técnicas e administrativas para, em meio à Guerra Fria, equilibrar visões de saúde pública nem sempre convergentes", completa a pesquisadora Gracemerce Camboim.