John Bercow nunca perdeu seu senso de humor. Ocasionalmente, ele se entregava à sedução de uma retórica generosa, no entanto, foi muito mais do que um speaker – presidente da Câmara dos Comuns – preocupado apenas com a agenda e a tentativa de conter os ânimos dos parlamentares.
Em sua declaração de despedida, ele se autodefiniu como um "ponto de apoio dos deputados nos bancos de trás", como alguém que se certificava de que os direitos dos parlamentares não seriam varridos pelos políticos-alfa nos assentos do governo. A Câmara dos Comuns lhe deve agradecimentos. Mas, mesmo nos elogios ao speaker e a seu mandato, ficou claro quão insuperáveis são os abismos na política britânica.
Enquanto a oposição e os moderados tories encontraram palavras calorosas para John Bercow, que se despede do cargo no final de outubro, outros membros do grupo dos conservadores não esconderam seu desprezo. Eles acham que o speaker era partidário em favor da oposição. Mas ele defendeu principalmente os direitos dos parlamentares contra um governo ameaçador e dominador.
Os conservadores direitistas, no entanto, queriam se vingar e, portanto, quebraram a tradição de que não se apresenta um contracandidato ao speaker em seu distrito eleitoral. Com sua saída, John Bercow antecipou-se ao seu desmonte por seu próprio partido.
A luta de poder entre o Executivo e o Parlamento tornou-se tão acirrada que os apoiadores de Boris Johnson estão dispostos a passar o rolo compressor sobre as últimas tradições da venerável casa com vista a abrir o caminho para o Brexit do primeiro-ministro.
"Estamos enfraquecendo este Parlamento por nossa conta e risco", disse o presidente da Casa perante os deputados, antes de eles entrarem no recesso forçado de cinco semanas ordenado pelo primeiro-ministro.
Mas aquele a quem se aplica essa advertência tapa os ouvidos em sua arrogância. Boris Johnson preferiria governar como os autocratas na Turquia, na Rússia ou em outros lugares, sem a interferência irritante dos parlamentares.
"Traidor da vontade popular", lê-se em cartazes de protesto que vêm sendo mostrados há semanas em Westminster. A escolha perfidiosa de palavras vem da imprensa marrom de direita, que, aliada ao chefe de governo, tenta convencer a população de que o Parlamento é um lugar inútil e sem sentido, que apenas desperdiça tempo em vez de implementar a vontade da maioria de um Brexit rápido e o mais "selvagem" possível. Desclassificar deputados, chamando-os de covardes, idiotas e vacilantes pertence atualmente ao repertório padrão de Boris Johnson.
E, assim, ele coloca o machado nas raízes da democracia parlamentar. Os representantes do povo não são meros executores da vontade majoritária de seus distritos eleitorais. Eles estão comprometidos com os cidadãos e o bem-estar comum. Mesmo que em Nottingham a maioria possa votar a favor de pular do avião, cabe ao seu representante explicar às pessoas que não há paraquedas a bordo – e, se eles ainda quiserem pular, contê-los, se necessário.
Foi isso que os parlamentares da Câmara dos Comuns tentaram fazer com sua lei de última hora contra um Brexit "duro". Muitos deles haviam subestimado a dificuldade de deixar a União Europeia (UE) quando votaram a favor de sua implementação há mais de dois anos.
No entanto, o projeto mostrou ser um veneno político tão forte que está comendo por dentro a política britânica. E por seus esforços para evitar um colapso econômico e político, os deputados estão sendo atacados. Insultos e ameaças de morte nas mídias sociais fazem agora parte da vida cotidiana.
O Reino Unido sempre se orgulhou da idade de suas instituições, de suas tradições e de suas regras por vezes bizarras. A reputação como pátria de uma democracia inabalável era um dos fundamentos da imagem britânica, fazia parte do prestígio político no exterior.
No entanto, desde o início da crise do Brexit, os britânicos perderam a reputação de serem racionais e pragmáticos. E agora os vizinhos horrorizados estão vendo o governo em Londres paralisar suas próprias instituições democráticas, prejudicando sua reputação e dificultando seu funcionamento.
Os membros da Câmara dos Comuns devem agora entrar em recesso forçado e não podem fazer nada até pouco antes da data do Brexit. Eles tentaram de tudo para atar as mãos de Boris Johnson. Mas não se sabe se a nova lei contra um Brexit desordenado é forte o suficiente para conter o primeiro-ministro.
Acima de tudo, o Parlamento está indefeso contra ser deixado de lado. Nas próximas semanas, o primeiro-ministro pode fazer o que quiser em Londres, porque não há supervisão democrática. E esta é uma situação particularmente perigosa para esse chefe de governo em curso destrutivo.
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