A Rússia está realmente se retirando? O presidente Valdimir Putin vai entregar ao Exército ucraniano Kherson, a única capital regional ocupada desde o início da invasão, em fevereiro? Com a tinta nos documentos de anexação ainda molhada?
De fato, é o que aconteceu. O Ministério da Defesa em Moscou anunciou que a retirada está concluída.
A primeira reação cautelosa de Kiev ilustra como custa aos ucranianos acreditar, ainda que tenham se empenhado tanto por esse resultado. Desde julho, com a ajuda do sistema lançador múltiplo de mísseis americano Himars, as Forças Armadas da Ucrânia vinham sistematicamente atacando e danificando as pontes sobre o Dnipro, o maior rio do país. Desse modo, o abastecimento das tropas russas na margem oriental ficou entre difícil e impossível.
Ainda assim, a cautela ucraniana é justificada, pois a retirada é uma gigantesca derrota histórica para Moscou, comparável à tentativa frustrada de tomar Kiev, no início da invasão. É um golpe contra o tão invocado patriotismo e contra a moral de batalha do exército russo, que já é bem baixa.
Quem procura lógica, perde seu tempo
Para a Rússia, essa derrota é especialmente dura, pois com a perda da margem direita do Dnipro, o invasor perde a cabeça de ponte para o avanço em direção a Mykolaiv e Odessa, locais onde mais tarde esta guerra poderá se decidir. Se a Ucrânia for capaz de manter essas zonas estratégicas, há boas chances de que fracasse definitivamente toda a campanha de guerra, e com ela, o regime de Putin.
Também por isso, até há pouco Putin proibia seus generais – se as notícias do New York Times procedem – de entregarem Kherson. Sua atual mudança de atitude mostra que o chefe do Kremlin aprendeu com os erros passados. E isso é perigoso, no tocante a seus planos futuros.
Do ponto de vista russo, é lógico desistir da cabeça de ponte na margem direita do rio, uma vez que é difícil abastecer e defendê-la. Essa era também a opinião de especialistas militares ocidentais. Porém quem procura lógica no procedimento da Rússia está perdendo seu tempo. Desde que começou, em 2014, essa guerra é um só ato de loucura.
Numerosos artigos e livros descrevem que na guerra os russos tradicionalmente têm pouca consideração pelas perdas humanas. A guerra contra a Ucrânia não é exceção. Moscou simplesmente não tem suficientes soldados para defender o front de mais de mil quilômetros. Por isso foi necessária a "mobilização parcial", que segue em curso.
Possibilidades de manobra traiçoeira são muitas
A aquiescência de Putin a uma retirada de Kherson – vergonhosa para ele – siginifica que, após algumas derrotas, ele não pode mais interferir tanto no planejamento bélico. Entretanto não abrirá mão de seus planos de ocupar o máximo possível do território ucraniano e derrubar o governo em Kiev.
Até porque a Rússia não dará muita chance ao exército ucraniano de se estabelecer em Kherson e lá passar o inverno. Há o risco de que as Forças Armadas russas explodam a barragem próxima a Nova Kakhovka, jogando a culpa na Ucrânia. Isso seria uma catástrofe para a população da região e frearia o avanço ucraniano.
Mesmo que tal não aconteça, a partir da margem oriental do Dnipro as tropas russas podem bombardear os postos ucranianos. Kherson está ameaçada de se transformar numa cidade em ruínas, como Mariupol.
Durante o inverno, poderá se estabelecer uma guerra de posição na região de Kherson, enquanto no Donbass é de se esperar um novo grau de intensidade bélica. É cogitável que a Rússia reforce suas tropas lá com as unidades agora retiradas de Kherson.
Foi o que ocorreu depois da derrota de Kiev. Na época, graças ao reforço de contingente, a Rússia pôde conquistar as cidades de Severodonetsk e Lysychansk. Essa experiência é mais um motivo para a Ucrânia não se alegrar cedo demais. O caminho até uma derrota da Rússia ainda é longo.
A lição mais importante de Kherson é que a Ucrânia provou mais uma vez ser capaz de se impor com êxito contra a Rússia e seus recursos superiores. Isso também é importante para o respaldo por parte do Ocidente, sem cuja ajuda não teria havido uma vitória ucraniana em Kherson.
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Roman Goncharenko é jornalista da DW. O texto reflete a opinião pessoal do autor, não necessariamente da DW.