Se a Suprema Corte conseguir o que quer, os Estados Unidos se tornarão um lugar pouco hospitaleiro para qualquer pessoa passível de engravidar. Na noite de segunda-feira (02/05), veio a público um rascunho de opinião majoritária do órgão sugerindo que os juízes pretendem anular a jurisprudência Roe vs. Wade, acabando assim com o direito ao aborto em nível federal.
O veredito Roe vs. Wade, de 1973, consagrou o direito constitucional do acesso ao aborto. A decisão judicial de 1992 que ratificava esse direito será também anulada, segundo a opinião inicial de maioria vazada pelo website Politico. "Roe estava gritantemente errada desde o início" e "deve ser revogada", escreveu o juiz Samuel Alito: "É tempo de respeitar a Constituição e devolver a questão do aborto aos representantes eleitos do povo."
Caso a instância máxima jurídica do país coloque a intenção em prática, esse direito seria decidido pelos tomadores de decisões de cada estado americano: os governadores e os respectivos Legislativos podem proibir a interrupção da gravidez, se quiserem.
E isso é o que muitos estados republicanos desejam – como ficou perfeitamente claro com as restrições rigorosas às intervenções, impostas nos últimos tempos pelo Texas, Mississipi e outros. Não haveria nada mais para impedir esses legisladores de, alegremente, eliminarem de vez o direito ao aborto.
Vidas femininas não importam
Para quem pode engravidar, a mensagem vem em alto e bom som: a instância jurídica máxima dos EUA não se importa com você. Nem os legisladores, impacientes para traduzir a decisão em ação. Nem os cidadãos que propiciaram um clima político em que o termo "pró-vida" passou a significar a proteção da vida do feto a todo custo – sem a menor consideração pela menina ou mulher em cujo útero essas células estão crescendo.
Esse insensível descaso pelas vidas femininas é apavorante. Afinal, cortar todas as vias legais para o aborto não quer dizer que ninguém mais interromperá uma gravidez, só que se recorrerá a outros meios, possivelmente inseguros.
Quem tem recursos financeiros poderá viajar para os estados de governo democrata que ainda dão acesso a cuidados de saúde essenciais, e lá realizar o aborto. Quem não tem esse dinheiro ou não pode pedir licença do emprego, ou perder os exames na escola e o jantar em família, procurará outros meios.
Cortar acesso ao aborto seguro, higiênico e legal significa que quem está mais desesperada recorrerá a intervenções ilegais, sejam químicas ou cirúrgicas. E encurralar essas mulheres ao ponto de tomarem medidas tão drásticas resultará em mortes.
Entre a cruz e a fogueira
É nauseante a pressão a que estarão submetidas as meninas, as mulheres e qualquer pessoa dos EUA que seja capaz de ficar grávida, mas não esteja planejando. O mesmo se aplica a quem planejou uma gestação, mas tem que considerar um aborto por razões médicas.
E o terror com que se defrontarão as sobreviventes de agressões sexuais? Caso engravidem em decorrência da traumática experiência, talvez não tenham saída. Tentar dar fim a uma gravidez sem meios legais pode representar ameaça de morte; e ter que gestar um bebê indesejado pode ter consequências devastadoras para a saúde mental.
A opinião de maioria vazada do Supremo Tribunal anuncia o fim da lei federal que, há cinco décadas, protegia o direito de uma mulher de optar pelo que achava ser melhor, em se tratando de uma decisão que alterará sua vida. Agora os legisladores estaduais estarão livres para privá-la desse poder de escolha.
Na terra dos livres e lar dos bravos, onde os conservadores consideravam ter que usar máscara protetora uma violação de sua liberdade pessoal, a aterrorizante verdade é esta: se você mora no estado errado, seus direitos pessoais, a posse do seu corpo, seu poder de decidir o que fazer da própria vida, tudo isso pode virar fumaça, assim que você fique grávida.
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Carla Bleiker é jornalista da DW. O texto reflete a opinião pessoal da autora, não necessariamente da DW.