Os capítulos do caso Queiroz
16 de maio de 2019O estopim
Em 6 de dezembro, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), um órgão do Ministério da Fazenda, detectou uma série de operações bancárias suspeitas de mais de sete dezenas de assessores e ex-assessores da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). O documento foi produzido no âmbito da Operação Furna da Onça, um desdobramento da Lava Jato que resultou na prisão de uma dezena de deputados estaduais.
A lista apontou, por exemplo, que assessores do deputado André Ceciliano (PT), atual presidente em exercício da Alerj, movimentaram 49 milhões de reais entre janeiro de 2016 e janeiro de 2017. Não foi o único caso. Assessores do deputado Carlos Minc (PSB) movimentaram 16 milhões de reais no período.
Na mesma lista constava Fabrício Queiroz, um ex-assessor do deputado estadual e senador eleito Flávio Bolsonaro (PSL), filho do presidente Jair Bolsonaro. Queiroz, que também é amigo de Jair desde a década de 1980, logo passaria a ser personagem central da primeira crise do novo governo.
Segundo o relatório inicial do Coaf, Queiroz, que mora em um apartamento simples em um bairro de classe média baixa do Rio, movimentou 1,2 milhão de reais em um período de 12 meses entre 2016 e 2017, época em que estava lotado no gabinete de Flávio. O documento apontou que as movimentações eram "incompatíveis com o patrimônio, a atividade econômica ou ocupação profissional" de Queiroz.
O mesmo relatório detalhou as operações bancárias realizadas pelo ex-assessor. Entre elas estava o depósito de um cheque de 24 mil reais na conta da esposa do então presidente eleito, Michelle Bolsonaro. No total, Queiroz sacou dinheiro em 176 oportunidades, em 14 bairros do Rio. Vários dos saques eram idênticos e fracionados, o que levantou suspeitas de tentativa de ocultação.
O relatório ainda citou a filha de Queiroz, Nathalia Melo de Queiroz, que foi beneficiada pelos recursos movimentados pelo pai. Nathalia foi funcionária do gabinete do então deputado federal Jair Bolsonaro entre dezembro de 2016 e outubro de 2018.
As explicações iniciais
Apesar de Queiroz não ter sido o único ex-assessor da Alerj com movimentações suspeitas, o caso logo despertou atenção por envolver o filho do então presidente eleito e o próprio Jair Bolsonaro.
O presidente afirmou no dia 7 de dezembro que o cheque de 24 mil reais para a sua esposa era referente ao pagamento de uma dívida pessoal. "Emprestei dinheiro para ele em outras oportunidades. Nessa última agora, ele estava com um problema financeiro, e uma dívida que ele tinha comigo se acumulou. Não foram 24 mil, foram 40 mil", disse.
O presidente afirmou ainda que o dinheiro foi para a conta de Michelle porque ele não tem "tempo de sair".
Já Flávio disse no mesmo dia que foi cobrar explicações de seu ex-assessor. "Ele me relatou uma história bastante plausível e me garantiu que não teria nenhuma ilegalidade nas suas movimentações", disse o senador eleito, sem detalhar que explicação plausível era essa. "Até que provem o contrário, eu confio nele", completou.
Pouco depois, o jornal Folha de S. Paulo apontou a suspeita de que Nathalia Queiroz era uma funcionária fantasma de Jair Bolsonaro. Ao mesmo tempo em que exercia a posição de assessora com 40 horas semanais de trabalho no gabinete do então deputado federal, ela atuava como personal trainer no Rio. O gabinete nunca registrou alguma falta dela.
O esconde-esconde de Queiroz
E onde estava Queiroz? Após a revelação do caso, o ex-assessor passou a evitar os holofotes. Ele também faltou a duas convocações do Ministério Público do Rio de Janeiro para prestar esclarecimentos sobre o caso, em 19 e 21 de dezembro.
Os advogados de Queiroz justificaram as ausências afirmando que o ex-assessor estava com problemas de saúde. Em uma das ocasiões, eles afirmaram que Queiroz precisou ser internado.
As suspeitas
No dia 11 de dezembro, um cruzamento dos dados do Coaf feito pela TV Globo mostrou que a maior parte dos depósitos feitos em espécie na conta de Queiroz coincidiu com as datas de pagamento de salários na Alerj. O documento apontou que nove ex-assessores de Flávio Bolsonaro repassaram dinheiro para Queiroz, que na maioria das vezes sacou os valores no mesmo dia.
Os dados sugeriram a prática de "rachadinha" ou "pedágio", que é a coleta de parte dos salários de assessores, típica de políticos de baixo clero em assembleias legislativas e câmaras municipais do país.
Queiroz aparece, mas pouco explica
Com o caso ganhando repercussão, Queiroz finalmente apareceu para dar explicações, mas não ao MP. Em 26 de dezembro, em uma entrevista amistosa concedida ao SBT – rede que vem demonstrando simpatia pelo governo –, ele disse que o valor movimentado era produto de negócios com a compra e venda de carros. "Eu sou um cara de negócios. Eu faço dinheiro. Eu faço assim: eu compro, revendo, compro, revendo. Compro carro, revendo carro. Eu sempre fui assim", disse.
Ele não apresentou nenhuma prova dessas compras e vendas de automóveis e também não explicou por que recebeu depósitos de colegas de gabinete.
Jair Bolsonaro afirmou em uma entrevista no início de janeiro que sabia que o amigo e ex-assessor do filho fazia negócios com carros, os quais chamou de "rolos". Ele também disse que seguia confiando em Queiroz "até que provem o contrário".
A internação e a dança
Pouco depois da entrevista, no final de dezembro, Queiroz deu entrada no hospital Albert Einstein, em São Paulo, uma das instituições de saúde mais caras do país. A internação para a "retirada de um tumor maligno no intestino" foi usada como justificativa para que ele e seus familiares não atendessem a novas convocações do MP-RJ.
Em 12 de janeiro, um vídeo em que Queiroz aparecia dançando alegremente nas dependências do hospital se espalhou na internet. Seu advogado afirmou que o vídeo foi gravado em um "raro momento de descontração", pouco antes de uma "séria cirurgia".
Flávio falta a depoimento
Em 10 de janeiro, foi a vez de Flávio Bolsonaro faltar a um depoimento sobre o caso no MP-RJ. Ele não era obrigado a comparecer. Nas redes sociais, ele se comprometeu a agendar um novo dia para prestar esclarecimentos. Ele também destacou que não era investigado no caso.
Conforme seu nome começou a ser associado com as suspeitas sobre Queiroz, Flávio também passou a ser menos ativo nas redes sociais.
Suspensão da investigação
Em 17 de janeiro, o MP-RJ informou que a investigação sobre Queiroz havia sido suspensa temporariamente por ordem do ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal (STF). O órgão evitou dar detalhes sobre a decisão, mas logo ficou claro que o pedido havia partido de Flávio Bolsonaro, que havia recorrido ao foro privilegiado garantido pela posição de senador eleito já diplomado para acionar o STF.
A ação entrou em choque com o discurso moralista do clã Bolsonaro, que em diversas ocasiões havia criticado a existência do privilégio para deputados e senadores. Nas redes sociais, críticos do presidente reproduziram um vídeo de 2017 em que Jair aparece ao lado de Flávio e chama o foro de "porcaria". Também causou estranheza que Flávio tomasse uma ação tão drástica, já que oficialmente ele não constava como investigado.
O caso repercutiu mal até entre apoiadores do presidente, embora alguns militantes tenham feito malabarismos nas redes para minimizar o episódio, como tentar chamar mais uma vez a atenção para casos de corrupção do PT.
Na sua reclamação ao Supremo, a defesa argumentou que o MP-RJ havia utilizado o Coaf para investigar Flávio de maneira oculta, passando por cima do STF. A defesa também argumentou que o MP havia quebrado irregularmente o sigilo bancário do senador eleito – embora no dia ainda não se soubesse publicamente se o Coaf também havia detectado movimentações suspeitas nas contas de Flávio. O procurador-geral de Justiça do Rio, Eduardo Gussem, negou as acusações.
A decisão de Fux também causou estranheza. O ministro, que foi nomeado para o cargo com um forte lobby de boa parte da classe política do Rio em 2011, havia assumido um dia antes o plantão do tribunal. A decisão de Fux também contrariou um entendimento do tribunal firmado em maio de 2018, que estabeleceu que o foro privilegiado só seria aplicado para deputados e senadores em casos envolvendo o exercício do mandato. No caso, as suspeitas investigadas pelo MP que envolvem Queiroz ocorreram muito antes da diplomação de Flávio. O próprio Fux havia votado pelo entendimento em 2018.
A decisão do ministro sobre o caso Queiroz prevê a interrupção da investigação até que o relator sorteado, o ministro Marco Aurélio Mello, se pronuncie. Isso só deve ocorrer após o fim do recesso do Supremo, em fevereiro. Marco Aurélio, no entanto, já adiantou que costuma remeter para "o lixo" reclamações como a de Flávio.
Novos dados do Coaf implicam diretamente Flávio
Um dia após a controversa decisão do STF, Flávio – a exemplo de Queiroz semanas antes – concedeu uma entrevista amistosa à TV Record, outra emissora aliada do governo. Ele criticou o MP-RJ e disse que o órgão estava conduzindo uma investigação "oculta" contra ele. Flávio também afirmou que continua sendo contra o foro privilegiado, mas que recorreu à prerrogativa para que fossem "cumpridas obrigações legais" sobre a competência do caso. Apesar das críticas, ele pouco esclareceu sobre as movimentações de seu ex-assessor.
Se Flávio esperava conseguir uma trégua com essa entrevista, o objetivo ficou ainda mais distante antes mesmo de a emissora levar o material previamente gravado ao ar na noite de 18 de janeiro. Minutos antes, a TV Globo revelou que o Coaf também havia detectado movimentações bancárias suspeitas envolvendo uma conta bancária do próprio Flávio.
No total, foram 48 depósitos em espécie entre junho e julho de 2017 na conta do senador eleito, realizados na agência bancária que fica dentro da Alerj e sempre no mesmo valor: dois mil reais. O total movimentado chegou a 96 mil reais. A forma como os depósitos foram feitos sugerem uma tentativa de ocultar as operações das autoridades fiscais. O foco não estava mais em Queiroz, mas em Flávio.
Um dia após a reportagem da TV Globo, Flávio foi ao Palácio da Alvorada para se reunir com seu pai. Não era o fim da escalada de más notícias. Na noite de sábado, a mesma emissora divulgou que o Coaf também havia identificado outra operação envolvendo Flávio: o pagamento de um título bancário da Caixa Econômica Federal no valor de um milhão de reais. Em 20 de janeiro, foi a vez de o jornal O Globo publicar que a movimentação financeira de Queiroz foi maior do que se supunha e alcançou 7 milhões de reais entre 2015 e 2017.
Enfraquecido, Flávio se explica novamente
Após quase dois dias em silêncio, Flávio foi se explicar sobre a movimentação de 96 mil reais em mais uma entrevista amistosa para a TV Record. Ele afirmou que os depósitos fracionados que totalizaram 96 mil reais são resultado da venda de um imóvel, que teve parte do pagamento feita em espécie.
Ele disse ainda que o título bancário de um milhão fazia parte da operação de financiamento desse imóvel. Flávio também justificou os depósitos fracionados argumentando que dois mil reais é o limite para depósito nos caixas eletrônicos na agência da Alerj. O comprador do imóvel disse ao jornal Folha de S.Paulo que, de fato, entregou 100 mil reais a Flávio como parte do pagamento.
O senador eleito, no entanto, não soube explicar a movimentação bancária de 7 milhões de reais de seu ex-assessor. Ele também negou que mandasse Queiroz recolher parte dos salários da sua equipe. "Se eu soubesse disso, mandava prender" , disse.
As recentes revelações enfraqueceram Flávio mesmo antes de sua posse como senador. Em dezembro, antes do caso, ele vinha se posicionando contra a eleição de Renan Calheiros (MDB-AL) para um novo mandato como presidente do Senado. Mas o desgaste deve fortalecer o senador alagoano.
A crise também ofuscou os preparativos da primeira viagem de Jair Bolsonaro ao exterior. Uma coletiva de imprensa do presidente prevista para ocorrer em Davos acabou sendo cancelada. Integrantes do governo também fizeram esforços para se dissociar de Flávio, argumentando que as suspeitas são um problema exclusivo do senador eleito.
Mais contratações suspeitas
Em meio ao escândalo das movimentações bancárias, uma nova suspeita recaiu sobre Flávio após o Ministério Público deflagrar uma operação que visava chefes de milícias que atuam em comunidades no Rio de Janeiro.
Em 22 de janeiro foi revelado que o ex-deputado empregou em seu gabinete a mãe e a mulher de Adriano Magalhães Nóbrega, policial militar suspeito de comandar milícias. Nóbrega está foragido. Sua mãe, Raimunda Veras Magalhães, e sua esposa, Danielle Mendonça da Costa da Nóbrega, trabalharam no gabinete de Flávio até 13 de novembro e recebiam, cada uma, 6,4 mil reais por mês. Raimunda foi uma das assessoras de Flávio que fez repasses a Queiroz.
Em nota, Flávio afirmou que Queiroz foi o responsável pela contratação e supervisão de Raimunda. O senador alegou estar sendo vítima de uma campanha difamatória para atingir o governo de seu pai.
Além de empregar no seu gabinete as parentes do suspeito de comandar milícias, Flávio chegou a homenagear Nóbrega duas vezes na Alerj, em 2003 e 2005. O filho de Bolsonaro também prestou homenagem ao major Ronald Paulo Alves Pereira, que foi preso nesta terça-feira, sob suspeita de ser o líder de uma milícia.
"Sobre as homenagens prestadas a militares, sempre atuei na defesa de agentes de segurança pública e já concedi centenas de outras homenagens. Aqueles que cometem erros devem responder por seus atos", disse Flávio, em nota.
STF nega foro privilegiado
Em 1º de fevereiro, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello negou um pedido da defesa de Flávio Bolsonaro para que as investigações sobre movimentações financeiras atípicas de seu ex-assessor Fabrício Queiroz fossem suspensas no Rio de Janeiro e passassem a tramitar na corte.
A defesa de Flávio Bolsonaro havia argumentado que o caso deveria ser avaliado pelo STF por conta do foro privilegiado adquirido com a diplomação de Flávio como senador em dezembro passado.
Os advogados de Flávio, filho do presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, também haviam pedido a anulação de provas colhidas nas investigações. Seu argumento era de que o Ministério Público do Rio de Janeiro solicitou acesso a dados sigilosos ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) "sem qualquer crivo judicial".
O ministro entendeu que os fatos a que o caso se refere ocorreram quando Flávio ainda era deputado estadual – e, portanto, sem direito a foro privilegiado –, arquivando o pedido sem julgá-lo e sem entrar no mérito da anulação das provas. Com a decisão, a ação correrá na primeira instância da Justiça do Rio. Marco Aurélio também decidiu retirar o sigilo do processo.
As investigações haviam sido suspensas pelo ministro Luiz Fux, que decidiu aguardar que Marco Aurélio, relator do caso, retornasse do recesso judiciário.
Queiroz dá sua versão
Fabrício Queiroz disse ao Ministério Público, no início de março, que recolhia parte dos salários de servidores do gabinete, mas negou ter se apropriado dos valores. Segundo a explicação que Queiroz prestou por escrito ao MP-RJ, o dinheiro recolhido dos funcionários do gabinete era usado para contratar assessores informais e "expandir a atuação parlamentar" de Flávio nas bases eleitorais.
O ex-assessor também afirmou que Flávio não sabia do esquema. "Por contar com elevado grau de autonomia no exercício de sua função, resultante de longeva confiança que nele depositava o deputado, o peticionante nunca reputou necessário expor a arquitetura interna do mecanismo que criou ao próprio deputado e ao chefe de gabinete", diz a petição entregue por Queiroz ao MP. O conteúdo do depoimento foi revelado pelo jornal O Estado de S. Paulo.
De acordo com a petição, Queiroz argumenta que "com a remuneração de apenas um assessor parlamentar", ele "conseguia designar alguns outros assessores para exercer a mesma função, expandindo, dessa forma, a atuação parlamentar do deputado".
Queiroz também descreveu a prática como uma "desconcentração de remuneração". Segundo ele, todo assessor já sabia no momento da contração que parte de seu salário seria devolvido com o objetivo de financiar os funcionários da base que não constavam na folha salarial da Alerj.
Quebra de sigilo bancário e fiscal de Flávio e Queiroz
Em 24 de abril, a Justiça do Rio de Janeiro autorizou a quebra dos sigilos fiscal de Flávio Bolsonaro, Fabrício Queiroz e mais 93 pessoas e empresas ligadas a eles, no período de 2007 a 2018. A decisão, revelada pelo jornal O Globo em 13 de maio, atende a pedido do MP-RJ, que viu "sérios indícios de lavagem de dinheiro" em transações imobiliárias de Flávio Bolsonaro com 19 imóveis no Rio de Janeiro.
O MP afirmou que as transações podem simular ganhos fictícios para encobrir enriquecimento ilícito decorrente de desvios de recursos da Assembleia fluminense.
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