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Os vivos e os mortos

J.P. Cuenca
1 de maio de 2020

Qual é o limite para a infâmia deste governo num momento de pandemia global? Sobre isso, hoje os mortos podem falar mais alto que os vivos.

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Cemitério em Manaus na pandemia da covid-19
Cemitério em Manaus na pandemia da covid-19Foto: AFP/M. Dantas

1.

Estendendo as mãos para fora da cama, admirou-se de não encontrar nada. "Ora essa", pensou, "as formigas devem ter comido a parede", e voltou a dormir. Pouco depois, a mulher o sacudiu: "Olha, seu preguiçoso", disse ela, "enquanto você estava dormindo, roubaram a nossa casa". O céu intacto espraiava-se por todos os lados. "Bem, o que está feito, está feito", pensou ele.

Pouco depois, ouviu-se um barulho. Era um trem que se aproximava deles a toda velocidade. "Com tanta pressa", pensou, "vai chegar com certeza antes de nós", e voltou a dormir. Depois, o frio o despertou. Estava banhado em sangue. Alguns pedaços da sua mulher jaziam junto dele. "Com o sangue", pensou ele, "surgem sempre muitos contratempos; se aquele trem não tivesse passado eu seria feliz. Mas, uma vez que já passou...", e tornou a adormecer.

Colunista J.P. Cuenca
J.P. Cuenca vive hoje entre São Paulo e BerlimFoto: privat

Nos últimos anos, sonâmbulos como o homem pacífico de Henri Michaux pulularam por estas terras. Liberais com deficiência de aprendizado, juristas de palanque e articulistas do chefinho distraíram-se dos ímpetos totalitários do asno que alçaram ao poder com o simples objetivo de apear um governo levemente trabalhista.

Quando confrontados, disseram: "O poder irá moderá-lo...", e voltaram a dormir.

2.

Hoje, as instituições estão sequestradas por milícias fascistas. A cada dia mais frágeis, adiam o momento em que terão que finalmente combater ou capitular. Indecisos entre o cálculo político e a defesa da Constituição, a desonra e a guerra, congressistas, senadores e presidentes das duas casas assistem, lívidos, a corrosão do que nos sobrava de Estado Democrático de Direito. Sem perceber que, um a um, todos estão virando sombras.

Antes de cair no sono, soltarão outra nota de repúdio.

3.

As intrigas palacianas com ramificações em grupos de extermínio que testemunhamos no meio de uma pandemia só podem acabar em (mais) tragédia. Não haverá renúncia ou acordo. Haverá tiroteio, assassinato, suicídio. Este governo miliciano sabe que, fora do poder, será encarcerado.

Entre a inocência e a impotência, a oposição democrática descobre a cada dia novos buracos para enfiar o pescoço. Enquanto nós, os últimos ilustrados, inventamos novas formas de conversar com o espelho. Sempre um pouco acima do chão, um pouco revolucionários – ligeiramente subversivos. Mas não muito.

Talvez por isso, nós, que ainda estamos vivos, fomos – e seguimos – incapazes de estar a altura do desafio histórico que temos diante dos olhos. A esperança que nos resta é outra.

4.

Quantos zeros precisam estar à direita para que a pilha de corpos torne-se (ou deixe de ser) uma abstração? Qual é o limite do aceitável? Qual o grau de parentesco? A aritmética da compaixão? Qual será a imagem, o cadáver exposto na calçada, a cova coletiva, que irá riscar uma linha a partir da qual um "e daí?" seja respondido com a guilhotina que merece?

Logo uma tempestade pesada cairá em cada trecho do Planalto Central, nas secas colinas, sobre os mangues e as florestas. Cairá, também, sobre os cemitérios, em rajadas nas cruzes e lápides, nas pontas dos portões, nos espinheiros e jardins, na grama, na lama. Ouviremos essa chuva cair na terra, como se encontrasse seu pouso definitivo, sobre todos os vivos e todos os mortos.

Talvez nesse dia, os últimos falem mais alto que os primeiros.

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Escritor e cineasta, J.P. Cuenca é autor de cinco livros traduzidos para oito idiomas. Seu último romance, Descobri que estava morto, foi vencedor do Prêmio Machado de Assis da Fundação Biblioteca Nacional e deu origem ao longa-metragem A morte de J.P. Cuenca, exibido em mais de 15 festivais internacionais. Ele hoje vive entre São Paulo e Berlim. Siga-o no Twitter, Facebook e Instagram como @jpcuenca

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