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Passado e presente colidem no Dia da Vitória em Berlim

9 de maio de 2022

Aniversário do fim da Segunda Guerra sempre teve forte carga política. A invasão da Ucrânia pela Rússia, sob o falso pretexto de prosseguir a luta contra o fascismo, dá nova urgência a uma revisão crítica da história.

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Manifestantes reunidos no Memorial de Guerra Soviético do Tiergarten, em Berlim
Berlim marcou o 77º aniversário do Dia da Vitória com eventos memoriais pela cidadeFoto: William Glucroft/DW

Em Berlim, o passado está sempre correndo atrás do presente e, em alguns dias, como no da Vitória na Europa, ele consegue alcançá-lo: a ocasião, que marca a capitulação incondicional da Alemanha nazista às Forças Aliadas, sempre anima ativistas a propalarem sua visão particular da história e sua versão de quem eram os mocinhos e os bandidos.

Desta vez, no 77º aniversário da data, a agressão militar da Rússia contra a Ucrânia colocou em questão a forma como a guerra mais mortal da história da humanidade é coletivamente recordada. Pois imagens de devastação que para muitos estavam relegadas aos livros de história agora se desenrolam em tempo real.

Embora a capitulação alemã tenha sido pronunciada em 8 de maio de 1945, em Moscou já era o dia seguinte, portanto os eventos se prolongam por dois dias. O Memorial da Guerra Soviética, no parque berlinense Tiergarten, foi palco para emoções e narrativas complexas.

"Está acontecendo de novo"

No domingo (08/05), a embaixada ucraniana promoveu uma cerimônia de deposição de uma coroa de flores. À medida que dignitários estrangeiros e autoridades alemãs chegavam, algumas centenas de manifestantes pró-Putin e pró-Kiev se alinhavam na rua em frente.

Quando o embaixador ucraniano na Alemanha, Andriy Melnyk, chegou, os adeptos do presidente russo começaram a gritar "Fora, nazistas", "Fora, Melnyk". Assim, davam sequência à narrativa oficial do Kremlin de que a "operação militar especial" russa no país vizinho seria um prosseguimento da luta que liberou a Alemanha do nazismo.

"Estou do lado das pessoas certas", afirma uma mulher à DW, recusando a declinar seu nome ou de onde vem, além de "bem longe". Mas os cravos vermelhos na mão – característicos dos simpatizantes da Rússia – e sua posição em meio à multidão pró-Putin não deixam dúvida sobre com quem está sua lealdade.

No Tiergarten em Berlim, manifestantes exibem informações sobre o papel da Ucrânia no combate ao nazismo
No Tiergarten em Berlim, manifestantes exibem informações sobre o papel da Ucrânia no combate ao nazismoFoto: William Glucroft/DW

Em resposta, o lado adversário bradava  "Slava Ukraini" – "vitória à Ucrânia", que se tornou o grito de batalha na guerra – e "Salvem Mariupol". Embora a municipalidade de Berlim tenha restringido a ostentação de bandeiras de ambos os lados, o azul e amarelo ucraniano era presente em outras formas – nas roupas e na tintura de cabelos dos manifestantes, por exemplo.

"É triste que até na Alemanha tenha gente que engole a propaganda de Vladimir Putin", lamenta o morador russo de Berlim Kaspar Kado, de 29 anos. Portando um cartaz onde se lia "Está acontecendo de novo", ele comenta que os ucranianos estarem sendo expulsos de suas casas o faz pensar em sua avó na Segunda Guerra, sendo enviada para trabalhos forçados na Alemanha.

"Quando eu cresci na Rússia, havia uma narrativa de 'nunca mais', quando se falava da Segunda Guerra Mundial. Putin trouxe de volta esses horríveis crimes de guerra."

"Não se veem citações de Hitler, mas de Stalin, sim"

Milhares de soldados soviéticos estão sepultados no Tiergarten, não muito longe do Portão de Brandemburgo e do Reichstag, o prédio do parlamento alemão. Hoje a área é um ponto apreciado para excursões e pacíficos passeios a pé, ao longo de amplas avenidas e em meio à vegetação. Em 1945, ele foi palco de uma brutal batalha final, cujas cicatrizes permanecem visíveis na forma de buracos de balas nas fachadas.

A Alemanha é obrigada a manter tais sítios como parte do acordo sobre a retirada das tropas russas do Leste alemão, no início dos anos 90. A União Soviética acabara de cair e o poder fora transferido à nova Federação Russa.

Outras partes da URSS, como a Ucrânia, sentem como se seus sacrifícios tivessem sido apagados da história: "Eles estão tentando dizer que só a Rússia derrotou os nazistas, o que não é verdade", aponta a ucraniana Natalia, preferindo não revelar seu sobrenome por razões de segurança.

Protestos marcam Dia da Vitória em Berlim
"Está acontecendo de novo": russos que vivem na Alemanha estiveram em ambos os lados dos protestos em BerlimFoto: William Glucroft/DW

Num contexto tão complexo, até mesmo algo tão simples como um ano pode ganhar carga política polêmica: enquanto os memoriais soviéticos, como o do Tiergarten, costumam se referir à guerra entre 1941 e 1945, para outros europeus orientais o Estado de terror e opressão começou com os nazistas em 1939, mas depois de 1945 continuou com os soviéticos.

Para Natalia, bandeiras ucranianas num memorial tipicamente associado à Rússia foi uma correção apropriada para o modo como a história é recordada. A ativista de Kiev de 24 anos diz que quer questionar a compreensão alemã de a quem o país deve o fim da ditadura nazista.

"Você não passeia por Berlim e vê citações de Hitler, mas se for ao Treptower Park, vai ver frases de Stalin, e todo mundo sabe quantos males ele criou para o seu próprio povo, na época soviética."

"Russos são realmente contra o fascismo e militarismo"

Natalia se refere a outra combinação de cemitério e memorial soviético, o maior da Alemanha, construído no bairro de Treptow, em Berlim Oriental, pouco após o fim da guerra. O vasto complexo simétrico leva até uma estátua de bronze de 12 metros de altura, no alto de um monte gramado: um soldado do Exército Vermelho, de pé sobre uma cruz suástica destroçada, segurando num braço uma criança e no outro, uma grande espada.

Nesta segunda-feira, como em todo 9 de maio, associações pró-russas, de extrema esquerda e anti-Ocidente se reuniram ali para prestar homenagens, ao lado de representantes estrangeiros – a maioria de ex-repúblicas soviéticas – e seus convidados. Centenas faziam fila para subir na estátua, ao pé a qual se empilhavam flores e mensagens de agradecimento ao Exército Vermelho.

Mulheres em memorial de guerra soviético
Centenas de pessoas se reuniram em memoriais de guerra soviéticos, como o do Treptower Park, em BerlimFoto: William Glucroft/DW

Para alguns dos presentes, a Segunda Guerra não acabou literalmente. Eles alegam que a Alemanha não se rendeu oficialmente e que o fascismo segue imperando, na forma do capitalismo ocidental. Também aqui há reflexos da narrativa putinista sobre a guerra na Ucrânia, segundo a qual ela teria sido provocada pelo imperialismo americano e a expansão da Otan em direção ao Leste Europeu.

"Nós expulsamos os fascistas da Alemanha Oriental, mas eles se reconstituíram no Ocidente", postula Uta, uma ativista de 80 anos da antiga República Democrática Alemã (RDA), sob governo comunista.

A zeitenwende, a mudança de paradigma na política externa anunciada pelo chanceler federal alemão, Olaf Scholz, em reação à invasão da Ucrânia pela Rússia, iniciada em 24 de fevereiro, não agrada a grande parte dessa multidão.

Para eles, novos gastos com as Forças Armadas alemãs e o envio de armas para a Ucrânia se defender dos invasores é uma repetição da história: "Se a Rússia perder... isso simplesmente não pode acontecer", reforça Uta, "eles são realmente contra o fascismo e o militarismo."