Policarpo Quaresma dialoga com leitores alemães
29 de outubro de 2001Um dos livros da biblioteca de Policarpo Quaresma era Geschichte von Brasilien, obra historiográfica que o alemão Heinrich Handelmann escreveu sobre o Brasil, em 1860, sem nunca ter visitado o país. Policarpo, que também nunca foi à Europa, levou ad absurdum seu plano de destilar as origens culturais brasileiras, baseando-se numa concepção européia de nação.
O Triste Fim de Policarpo Quaresma chegou recentemente às mãos dos leitores de língua alemã, na impecável tradução de Berthold Zilly, sendo celebrado pela crítica como obra canônica da literatura brasileira e como um clássico na tradição de Gustave Flaubert, ou Theodor Fontane, autor de Effi Briest e Frau Jenny Treibel. Só que Berthold Zilly já visitou o Brasil e pretende, com suas traduções, destacar a atualidade de alguns clássicos brasileiros.
Euclides e Lima Barreto
Após anos de dedicação a Os Sertões, Berthold Zilly escolheu Lima Barreto para traduzir, interessando-se pelo que vê de comum em ambos os autores: "Como bons e sinceros patriotas, preocupados com a integração das camadas marginalizadas, eles procuraram interpretar a realidade social e política daquela época e os rumos da história do Brasil, analisando os problemas, alguns óbvios, como o atraso econômico, a falta de identidade cultural e nacional, principalmente por parte das elites, a falta de educação escolar entre grande parte do povo, o altíssimo índice de analfabetismo, a dependência política e econômica do país e a estrutura autoritária e clientelista da sociedade."
Crítica ao patriotismo
Mas, com a tradução de Policarpo Quaresma, Berthold Zilly "não quis apenas dar a Lima Barreto a possibilidade de explicar o Brasil aos alemães", mas também destacar a universalidade temática do romance: "Este livro discute de um modo mais geral e mais universal os perigos e os impasses do patriotismo exagerado e do nacionalismo exacerbado. Ele mostra o absurdo do desejo de se definir uma cultura nacional por alguma essência pura. O herói procura saber o que é 'genuinamente' brasileiro, como ele diz. O método de pesquisa dele é separar e pôr de lado todos os aportes estrangeiros, sendo finalmente obrigado a notar um fenômeno que todos nós conhecemos, ou seja, o caráter mestiço de qualquer cultura nacional (típico da cultura brasileira, mas que faz parte, no fundo, de todas as culturas e de todos os tempos). Mestiço, não necessariamente no sentido racial, mas no sentido cultural." Este é, com certeza, um dos temas de maior atualidade na opinião pública alemã.
Sátira traduzida
A tradução de Berthold Zilly resgata o coloquialismo do romance, marcando com precisão as mudanças de registro na fala das personagens e do narrador: um pressuposto importante para transmitir as nuances da sátira. Mas não o único: "Qualquer tradução tem suas dificuldades, mas a sátira tem dificuldades específicas. Ela pressupõe um ponto de vista comum entre o autor e o público, ou seja, o ponto de vista do qual se pode rir. Você tem que ter um certo acordo sobre aquilo que é risível, que é ridículo. Para isso, é necessário haver certos conhecimentos. Existe não apenas uma defasagem lingüística, cultural e geográfica entre o Rio de Janeiro de 1889—1894 e o mundo de hoje. Eu tive que contrabandear dentro do texto do romance algumas explicações, anexando outras no glossário, na cronologia histórica e no posfácio; do contrário, o leitor alemão não teria as informações necessárias para entender a sátira e a ironia", observa Zilly.
A edição alemã de O Triste Fim de Policarpo Quaresma, publicada pela editora suíça Ammann, com uma ilustração do bondinho de Santa Teresa na capa, inclui um amplo aparato crítico e um mapa do Rio antigo, aproximando do leitor o universo do romance.
Tradutor implícito
Em um de seus ensaios sobre Os Sertões, Berthold Zilly destaca a atualidade do discurso híbrido poético-científico de Euclides da Cunha, mostrando que a obra já contém sua própria traduzibilidade. No romance de Lima Barreto, Zilly também reconhece um "tradutor implícito": "Apesar de ser um livro genuinamente brasileiro, seus critérios e padrões de interpretação vêm da Europa. A própria idéia de nação é européia. Há muitos exemplos que mostram a inserção do pensamento de Lima Barreto na história da cultura, da literatura e do pensamento europeus, numa tradição de pensamento libertário, emancipatório, de esquerda, incluindo uma certa dose de saudosismo monarquista. Tudo isso marcou o herói Policarpo Quaresma e também o autor e o narrador. No fundo, é um livro muito brasileiro, mas também um livro europeu e um livro universal."
Outros projetos de tradução
Berthold Zilly, que se autodenomina um "tradutor bissexto", dada a prioridade de suas ocupações acadêmicas, também pretende traduzir Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar: "Embora seja um livro mais recente, de um autor ainda vivo, ele apresenta um mundo arcaico e lingüisticamente bastante complicado."
Além disso, ele gostaria de traduzir O Ateneu, de Raul Pompéia, "um dos grandes romances de formação e também uma imagem da sociedade brasileira da época", e Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida, pois também se interessa pela vertente cômica e "malandra" da literatura brasileira. "Tenho um grande interesse pela história, vontade de mergulhar na história de outras épocas e culturas", afirma Zilly.