Por que falar em voto impresso embute riscos para democracia
26 de maio de 2021O debate sobre a obrigatoriedade do voto impresso nas eleições, a dois anos do pleito presidencial, já oferece munição a grupos bolsonaristas para desqualificarem o processo democrático com antecedência, ainda que sem nenhuma prova factível sobre fraudes no atual sistema de votação eletrônica do país.
No script brasileiro é clara a semelhança com o roteiro traçado por Donald Trump nos Estados Unidos, que terminou de forma trágica com a invasão do Capitólio no dia 6 de janeiro deste ano após o então presidente americano apontar a existência de "votos ilegais” e questionar a vitória de Joe Biden.
"E para que serve agora esse debate sobre imprimir o voto, no Brasil? É claramente um paralelo com os EUA, onde a nova direita age em várias frentes questionando princípios da democracia. Aqui a brecha para questionar o resultado eleitoral vai ser a urna eletrônica", define o cientista político Bruno Speck, professor da Universidade de São Paulo (USP).
Debate no Congresso a serviço do bolsonarismo
O assunto entrou oficialmente para a pauta do Congresso, que no último dia 13 instalou uma comissão especial para analisar a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 135/19 que torna obrigatória, na votação e apuração de eleições, plebiscitos e referendos, "a expedição de cédulas físicas, conferíveis pelo eleitor, a serem depositadas em urnas indevassáveis, para fins de auditoria".
Por se tratar de emenda constitucional, a aprovação com maioria absoluta dos votos e em tempo hábil – um ano antes das eleições de outubro de 2022 – é vista com ceticismo no Congresso e entre analistas políticos. Mas, se aprovada ou não a PEC, o debate por si só já cria o ambiente que interessa aos apoiadores de Jair Bolsonaro.
"Todo mundo que está ali no Congresso, inclusive o próprio Bolsonaro, ganhou a eleição com as regras do jogo que existem hoje. O voto impresso coloca certa imprevisibilidade no sistema. O raciocínio de que o voto seria impresso e, mais do que isso, que poderia haver um comprovante do voto, o que é o absurdo dos absurdos, interessa ao 'bolsonarismo raiz', e a representantes de milícias, e do narcotráfico. Mas isso não é uma regra que desperta interesse a toda classe política brasileira', sustenta o cientista político e analista Carlos Melo, professor do Insper.
A PEC analisada é de autoria da deputada federal Bia Kicis (PSL-DF), que preside a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara e é uma das parlamentares mais identificadas com o bolsonarismo. A estratégia da deputada, de abrir o debate em forma de emenda constitucional, é também uma maneira de reduzir o poder de influência do Supremo Tribunal Federal no futuro.
O STF já considerou, em junho de 2018, inconstitucional o retorno do voto impresso. Esse julgamento foi retomado de forma definitiva em 2020. Por unanimidade dos votos, a Suprema Corte brasileira definiu que não há nenhuma demonstração de fraude no uso das urnas eletrônicas e que o sistema, seguro, deveria prevalecer uma vez que a impressão em papel poderia violar o sigilo do voto. Porém, o STF julgou naquela ocasião uma lei federal, que havia sido aprovada em 2015 no Congresso, vetada pela então presidente Dilma Rousseff e questionada pela Procuradoria-Geral da República à época. Desta vez, se a tese do voto impresso prosperar a partir de uma mudança da Constituição, a margem de manobra do Supremo para contestação se reduzirá.
Rejeitando as regras do jogo democrático
Rejeitar as regras do jogo democrático em vigor – no caso o modelo atual de votação eletrônica –, segundo Speck, é um dos tópicos centrais da lista elaborada por Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, na obra Como as democracias morrem, para reconhecer os novos governos autoritários.
Outros itens da lista são habituais no comportamento de bolsonaristas: a negação da legitimidade dos oponentes, tolerância e encorajamento à violência e propensão a restringir liberdades civis de seus oponentes e críticos. Como comandante dessa tropa, Jair Bolsonaro declarou, no último dia 15, que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a quem chamou de "canalha”, poderia ganhar as eleições no ano que vem por fraude. Lula lidera as pesquisas de intenção de voto mais recentes e derrotaria Bolsonaro em 2022. "Esse canalha pela fraude ganha as eleições do ano que vem. Nós não podemos admitir um sistema eleitoral que é passível de fraude. E eu tenho dito: se o nosso Congresso Nacional aprovar a PEC do voto auditável da Bia Kicis, e ela for promulgada, nos teremos voto impresso em 22″, declarou.
Ex-presidente da Câmara, o deputado federal Arlindo Chinaglia (PT-SP) já acompanhou todos os debates sobre a urna eletrônica no Congresso ao longo dos anos, desde que o sistema foi instalado no Brasil, em 1996. Segundo ele, a diferença de questionamentos anteriores sobre a segurança da urna e o atual, patrocinado por Bolsonaro, é que dúvidas passadas se justificavam pelo fato de o sistema não estar consolidado e haver alguma necessidade de aperfeiçoamento.
"Naquela época em que a urna eletrônica foi instalada havia uma certa preocupação difusa. Agora, temos um agravante: Bolsonaro está colocando sob suspeição o processo democrático. Com isso, a discussão muda de patamar. O presidente, que ganhou as eleições em 2018 com esse sistema, inocula a ideia de eleição fraudada. A base bolsonarista e Bolsonaro não se incomodam em inocular essa desconfiança no sistema e, portanto, colocam em questionamento todo o arcabouço jurídico e democrático do país”, alerta Chinaglia.
Integrante da comissão especial que analisa a PEC, Chinaglia afirma que cabe ao colegiado averiguar, de maneira racional e sem ideologia, se é possível fraudar ou não a urna eletrônica. "Contra fatos não há argumentos."
Ele pontua que os críticos do sistema criam teorias da conspiração mas, até hoje, ninguém apresentou uma prova sequer de possível fraude. "O voto impresso, de papel, historicamente, foi o que permitiu fraudes eleitorais no Brasil. Agora vamos chamar as autoridades, os técnicos, para ver se tem vulnerabilidade no sistema." Uma das estratégias que está sendo articulada na comissão, junto ao TSE, é fazer um teste das urnas com a presença dos parlamentares e auditores independentes.
Estratégia para minar a legitimidade das eleições
Para se contrapor à retórica dos apoiadores de Bolsonaro, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), presidido pelo ministro do STF Luís Roberto Barroso, se antecipou e iniciou, na semana passada, a divulgação de uma campanha institucional em defesa do voto eletrônico. O objetivo é explicar, de forma didática e transparente, todas as etapas do processo e esclarecer que há, sim, inúmeras etapas que permitem auditagem. No primeiro vídeo institucional, com mais de 15 minutos, Barroso explica detalhadamente que há nove possibilidades de auditagem ao longo do processo, desde a instalação de software nas urnas eletrônicas até a apuração.
Entre as auditagens possíveis, Barroso destaca três: uma delas é a "zerésima”, a impressão total de votos das urnas, num papel, após a finalização da votação, em que é possível checar se o número de eleitores presentes na seção eleitoral coincide com o número de votos registrados nas urnas. Outra etapa é o chamado "teste de integridade", por amostragem, que consiste em editoria externa. Nesta etapa, os eleitores fazem um voto em cédula e, em seguida, na urna. Os dois são filmados. "Nunca deu distorção", ressalta o presidente do TSE.
Por fim, a Justiça Eleitoral destaca, ainda, que há o chamado RDV (registro digital do voto), que possibilita a checagem sem violação do sigilo do voto. É uma recontagem automatizada de todos os votos. "Qualquer partido pode solicitar ao TSE, num prazo de cem dias, o RDV para recontagem automatizada com softwares particulares”, enfatiza Barroso na peça institucional. O grupo que defende o voto impresso alega que o eleitor não tem como checar se o voto registrado na urna eletrônica coincide com a sua escolha e, por isso, argumenta que devem ser anexadas impressoras nas urnas para que essa auditoria, um direito individual, ocorra.
Em janeiro deste ano, o instituto Datafolha fez uma pesquisa de opinião pública sobre o sistema de votação no país: 73% dos eleitores disseram preferir que o modelo seguisse como votação eletrônica, e 23% defenderam a volta à votação em cédulas de papel; 4% não opinaram.
"Vejo tudo isso como uma clara estratégia de minar a legitimidade das eleições. Esse grupo no poder não aceita as regras do jogo democrático. Ele busca meios para fazer valer e introduzir esse argumento da fraude na próxima eleição. O instrumento estratégico é a urna eletrônica com voto impresso. Isso nos leva à ideia de terceiro turno, o não reconhecimento do resultado eleitoral, com a consequência que não sabemos até onde vai. Nos EUA as instituições resistiram. No Brasil temos a vantagem de a Justiça Eleitoral ser despolitizada, mas, por outro lado, ela não tem uma proteção política. A classe política deve defender a lisura do TSE e do voto eletrônica", afirma o professor Bruno Speck.