"Precisamos de uma bancada comprometida com reforma agrária"
28 de setembro de 2022A combinação parece improvável para alguns: ativista LGBTQIA+, membro há mais de vinte anos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e drag queen. Assim é a educadora e artista Ruth Venceremos, candidata a deputada federal pelo Distrito Federal nas eleições de 2022 pelo PT, partido ao qual se filiou em 2021.
Negra e filha de uma família de lavradores de doze filhos, o nome de batismo de Ruth é Erivan Hilário. De origem humilde, a família da educadora teve que migrar das terras de origem, em Pernambuco, por causa da construção de uma barragem no local. "Nasci em um barco, no meio do rio São Francisco, e fui registrada em Belém de São Francisco, porque na época minha família já tinha saído de Pernambuco e morava na Bahia", conta Ruth.
Aos 13 anos, ela e a família conseguiram retornar a Pernambuco ao ingressarem no assentamento Santa Maria da Boa Vista (PE), do MST. Lá, Ruth estudou em escolas de assentamento, percorreu outros assentamentos e, por meio de uma parceria do MST com universidades públicas, cursou Educação na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Atualmente, ela integra a coordenação nacional de educação do MST.
Com foco no combate ao racismo e LGBTfobia, na promoção da agricultura familiar e na educação, a candidatura de Ruth faz parte de uma iniciativa do MST para aumentar a participação de membros do movimento no Congresso Nacional.
"O MST faz uma coisa belíssima, que é romper as cercas da ignorância, já que a educação é um elemento essencial para o movimento, que tem formado pessoas em várias áreas do conhecimento. A educação é fundamental para que exista o MST que temos hoje", afirma Ruth em entrevista à DW Brasil.
A educadora iniciou o ativismo LGBTQ+ dentro do próprio MST, com demais colegas assentados, nos anos 1990. Em 2018, Ruth ajudou a fundar o coletivo LGBT Sem-Terra.
"O MST poderia ter ficado parado no tempo nesses quase 40 anos [de existência], mas ele vive um processo constante de atualização", diz a candidata, que defende a necessidade de uma bancada da agricultura familiar camponesa no Congresso, comprometida com os trabalhadores do campo e com a reforma agrária.
"Atualmente, em todo o Congresso Nacional, temos apenas três deputados que são do MST. É muito importante termos aliados nas pautas do campo dentro do Congresso, mas nada substitui o próprio trabalhador e a trabalhadora ocupar uma cadeira dentro do Parlamento."
DW Brasil: Você tinha 13 anos quando sua família entrou para o MST. Como o movimento mudou sua vida?
Ruth Venceremos: Eu venho de uma família de origem pobre, sem muitas condições, uma família grande de 12 irmãos. A escassez de alimentos era uma realidade para nós, mas, ao ingressar no MST, o movimento mudou a minha vida ao melhorar as condições da minha família. Depois do ingresso, nós não passamos mais pelas dificuldades que estávamos acostumados a passar. E quando aparecia uma dificuldade, a saída era coletiva, tínhamos uma comunidade de trabalhadores e trabalhadoras em quem se apoiar.
Mais que alimento, o MST também foi um lugar de reencontro para a gente: minha família é de origem camponesa, e teve que sair do campo quando eu tinha dois anos de idade por causa da construção de uma hidrelétrica no local. Quando entramos para o MST e tivemos acesso ao campo novamente, foi um reencontro com o nosso lugar de origem.
O MST também contribuiu com o meu processo educacional e, por consequência, ampliou minha visão de mundo na convivência com os trabalhadores e trabalhadoras, nos processos coletivos, no descolamento da minha comunidade para conhecer outros lugares. Tudo isso fez com que eu ampliasse o meu repertório cultural e de entendimento político sobre o mundo.
Lula chocou parte dos espectadores em uma entrevista ao Jornal Nacional ao dizer que o MST é responsável pela maior produção de arroz orgânico do Brasil. Chama a sua atenção esse tipo de episódio ainda acontecer, após quase 40 anos de existência do MST?
Eu acho que uma parte da população tem aquela memória de alguns feitos passados do MST, né? Mas também temos uma grande mídia que não traz a verdade sobre o que de fato é o movimento. Além de ser um dos maiores produtores de arroz do mundo sem utilizar nada de agrotóxico, o MST é um dos maiores fomentadores de um projeto educacional para o país. Por tudo isso, me causa espanto perceber que as pessoas ainda não sabem o que o MST faz.
Temos uma base social que completará 40 anos em 2024, uma base muito bem consolidada que sobreviveu a todos os governos que passaram pelo país. Sobrevivemos até ao governo Bolsonaro, com todos os cortes feitos na política agrária e de financiamento praticamente ausente ao agricultor. Mesmo com todas as barreiras, o MST é uma potência de produção agroecológica e familiar no Brasil. E a agricultura familiar é muito importante para o país. Estão aí os dados para provar: 70% do alimento que chega à nossa mesa foi produzido pela agricultura familiar camponesa.
Você espera que a opinião pública sobre o MST mude no próximo governo, independente de quem vencer as eleições?
A percepção das pessoas sobre o MST já mudou muito nos últimos anos, principalmente durante a pandemia, quando o movimento ajudou quem precisou, prestou várias ações de solidariedade, ajudou no campo da saúde, doou alimento etc. A pandemia mostrou a grandeza do MST e quem somos, um movimento pautado na cultura camponesa e que produz alimento para o povo.
Veja, o MST poderia ter ficado parado no tempo nesses quase 40 anos, mas ele vive um processo constante de atualização e muitas pessoas já percebem isso. E o movimento não parou no tempo porque tem sido capaz de incorporar pautas que dizem respeito ao seu próprio povo. Olha aí quantas mulheres conseguiram ocupar espaços importantes no MST.
Não somos só uma luta de direito à terra, é um movimento de formação política, que rompe as cercas do latifúndio improdutivo e das fazendas que se utilizam de trabalho escravo ou não cumprem o seu papel social. Mas não só isso, o MST faz uma coisa belíssima, que é romper as cercas da ignorância, já que a educação é um elemento essencial para o movimento, que tem formado pessoas em várias áreas do conhecimento. A educação é fundamental para que exista o MST que temos hoje. Eu, por exemplo, concluí o antigo ensino fundamental em uma escola de assentamento, fiz o ensino médio em uma parceria do MST com uma universidade da Paraíba e cursei a minha graduação na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, mais uma vez por meio de uma parceria do MST com o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária [Pronera].
A produção do agronegócio brasileiro bateu recorde durante a pandemia, mesmo período em que o país voltou para o Mapa da Fome. Uma das explicações para tal disparidade é a política de incentivo às commodities em detrimento dos programas de apoio à agricultura familiar. Com uma bancada tão forte no Congresso, a bancada do agronegócio, você acha possível dar protagonismo ao pequeno produtor nos próximos anos?
Os governos fazem opções e a opção pelo incentivo ao agronegócio neste governo é de motivação política. A gente sabe que o agronegócio é um modelo de produção que destrói a natureza, que produz apenas commodity para exportação e não para manter o mercado interno. Ao mesmo tempo em que promove esse modelo, o governo Bolsonaro acabou com importantes políticas agrárias do Conab*, como o programa em que o governo comprava alimentos diretamente da agricultura familiar, estimulando o desenvolvimento do setor no país. Isso aconteceu porque o agronegócio tem seus representantes lá no Congresso Nacional, que defendem o setor inclusive com pautas como a liberação de mais agrotóxicos.
Isso demonstra que precisamos de uma bancada da agricultura familiar camponesa no Congresso, comprometida com os trabalhadores e trabalhadoras do campo e com a reforma agrária, com a produção de alimentos e com os pequenos agricultores. Atualmente, em todo o Congresso Nacional, temos apenas três deputados que são do MST. É muito importante também termos aliados nas pautas do campo dentro do Congresso, mas nada substitui o próprio trabalhador e a trabalhadora ocupar uma cadeira dentro do Parlamento.
*A Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) é uma empresa pública vinculada ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), criada em 1990.
Qual a sua avaliação sobre o programa nacional de reforma agrária?
Um desastre. O programa de reforma agrária do governo Bolsonaro virou um movimento de privatização das terras públicas sob o controle do Estado, já que um assentamento de reforma agrária é uma terra do Estado, ainda que os trabalhadores ganhem o direito de fazer uso dela. Tivemos um governo que diz que avançou com a titularização das terras, mas a titularização passou a ser a apropriação de poucos de uma terra que deveria ser de bem comum**.
Sem o título da terra, os agricultores não conseguem acessar as linhas de crédito no banco e têm muita dificuldade para produzir. Já os que recebem o título de maneira individual não têm como arcar com as terras e acabam vendendo-as. Se já temos dificuldade para produzir coletivamente, imagina cada um por si só nesse contexto? Então, o que esse governo quer é um processo de reconcentração fundiária, e não a reforma agrária democrática.
**Em maio, o MST divulgou uma carta afirmando que os mais de 330 títulos concedidos nos quase quatro anos do governo Bolsonaro são enganosos e não asseguram a propriedade da terra, uma vez que são "apenas documentos de ocupação provisória", diz a carta.
O Brasil é o país líder em assassinato de pessoas LGBTQI+ no mundo. Como o Estado pode mudar essa realidade?
É urgente mudar essa estatística, e a gente só consegue mudar estatísticas com políticas de Estado e de formação. Os adultos que hoje são LGBTfóbicos, racistas, machistas, foram crianças no passado. Então, que tipo de educação elas receberam para se tornarem esses adultos? Uma educação de gênero, sexual e inclusiva tem que partir do Estado. A escola é um lugar fundamental para promover a mudança, então precisamos que esses temas sejam debatidos nas escolas. Contudo, o que acontece hoje em muitos lugares é que nós, LGBTQI+, somos expostos nas escolas a diversas violências, como a "brincadeira", o olhar indiferente, ou o professor que chama o aluno trans pelo seu nome morto, como a gente diz para quem adota o nome social.
Outro fator é que nós precisamos saber quem e quantos nós somos. Está aí a importância de um Censo que inclua essa população e para que o Estado possa formular políticas públicas que garanta os direitos básicos a nós, LGBTQI+. Ou seja, a nossa pauta não está reduzida à luta pelo respeito à nossa identidade de gênero. Nossa pauta também é por saúde, educação, segurança.