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"Precisamos de uma COP só para os oceanos", diz cientista

5 de novembro de 2021

Pesquisador que integrou a maior expedição para estudar o microbioma oceânico cobra atenção a impactos da poluição e mudanças climáticas sobre a vida marinha. Mares respondem por 54% da produção de oxigênio do planeta.

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Foto submarina, com raios de luz cortando a água
Importância dos oceanos para o equilíbrio ecológico da Terra ainda não recebe a devida atençãoFoto: Colourbox/S. Dmytro

É fácil compreender a importância dos oceanos para a vida na Terra: além de regularem o clima do planeta, as algas marinhas são responsáveis por 54% da produção global de oxigênio. Embora os mares exerçam esse papel vital, ainda não recebem a devida atenção nas mesas de negociação do clima. Essa é a avaliação do cientista Hugo Sarmento, pesquisador da fundação francesa Tara Océan.

"Precisamos de uma COP só para os oceanos", afirma o biólogo, em entrevista à DW Brasil. "Já estamos em tempo de pensar numa coisa assim, porque as problemáticas são muitas, e diferentes dos ecossistemas terrestres."

Sarmento fala com conhecimento de causa. O cientista português participou da primeira volta ao mundo realizada pelo navio da Tara Océan. Entre 2009 e 2013, a expedição coletou amostras de microrganismos em todos os oceanos do globo, no maior estudo do microbioma oceânico já realizado.

A viagem resultou em cinco artigos científicos publicados na prestigiada revista Science. A viagem tinha por objetivo o estudo do microbioma oceânico – "consórcios" ou superorganismos de espécies microbianas interdependentes, responsáveis por garantir as condições mínimas de vida do planeta.

"Existem 1 milhão de bactérias e 10 milhões de vírus em uma gotinha de água de mar. Esses microrganismos pertencem a milhares de espécies diferentes, e cada um tem uma função bem específica", explica Sarmento. O cientista estuda como esses sistemas complexos são afetados pelas mudanças climáticas.

Fundamental para a vida na Terra, o microbioma é extremamente suscetível a mudanças de temperatura, correntes oceânicas e à presença de plásticos. Apesar dos impactos que já começam a ser observados, sobretudo nas regiões polares, as iniciativas de preservação ainda são tímidas. Não há clareza, contudo, sobre a responsabilização pelas águas internacionais.

"O problema é que o oceano não é de ninguém", atesta o pesquisador. Sarmento apela para que a comunidade internacional chegue a um entendimento sobre essa indefinição. "Temos o exemplo da Antártica, que transformamos num santuário de pesquisa internacional. É um ambiente saudável, de pesquisa, e todos os países que estão lá se responsabilizam por uma parte."

Professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), ele coordena o projeto de pesquisa AtlantECO no Brasil. A iniciativa financiada pela Comissão Europeia se dedica a pesquisar os oceanos, principalmente o Atlântico Sul, nos próximos quatro anos. Nesta sexta-feira (05/11), ele participa da conferência Um oceano sustentável, organizada pela Tara Océan no Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro.

A conferência abre a série de atividades gratuitas, que irão até 10 de novembro e incluem exposições sobre microplástico no mar e o microbioma marinho, além de visitas virtuais ao navio-laboratório Tara, que ficará ancorado ao lado do Museu do Amanhã até o dia 7, e na Marina da Glória entre 8 e 10 de novembro.

DW: Como você explica para completos leigos o que é esse estudo, esse trabalho, qual é o foco dessa pesquisa, dessa experiência em que você trabalha?

Hugo Sarmento: Pouca gente sabe, mas a vida no oceano é totalmente dominada por microrganismos. Se nos ecossistemas terrestres temos as florestas, onde as plantas puxam os nutrientes do solo e levam até as folhas para fazer fotossíntese, no oceano são as correntes marinhas que transportam os nutrientes do fundo para a superfície. E quem faz fotossíntese são esses microrganismos. Portanto, a produção de oxigênio, a fotossíntese no oceano tem a particularidade de ser feita por microrganismos. Os oceanos ocupam 70% da superfície do globo terrestre. Se somarmos tudo, eles produzem metade do oxigênio que respiramos. Juntando com todas as florestas, esses microrganismos têm um papel muito importante para nós: eles produzem o ar que respiramos.

Tem outros aspectos importantes dos microrganismos marinhos: um deles é que cerca de 25% das emissões de gases do efeito estufa pela queima dos combustíveis fósseis são absorvidos pelos oceanos. Os gases acabam sendo fixados por esses microrganismos e indo para o fundo do mar, quando morrem ou são ingeridos por outros organismos. Eles acabam sendo esse sumidouro de carbono que aliviam um pouco os efeitos da queima de combustíveis fósseis.

Por último, esses microrganismos são a base de toda a cadeia alimentar do oceano. Todos os organismos do mar que a gente conhece comem plâncton ou algum organismo que come plâncton. Eles são a base de toda a vida no oceano. Esses microrganismos são extremamente suscetíveis a mudanças de temperatura, correntes oceânicas e à presença de plásticos. Os plásticos são colonizados por microrganismos e acabam servindo de transporte de microrganismos de um lado para outro.

O foco do estudo acaba sendo o microbioma, que é o conjunto de microrganismos e as suas interações, porque esses microrganismos interagem entre si, formando autênticos consórcios microbianos. Em um mililitro de água de mar existem 1 milhão de bactérias e 10 milhões de vírus – em uma gotinha de água de mar. Esses microrganismos pertencem a milhares de espécies diferentes, e cada um tem uma função bem específica. Pequenos distúrbios podem afetar as interações. A gente está estudando isso com muito cuidado.

A importância dos oceanos fica relegada a segundo plano nos debates sobre o futuro climático do planeta?

Já foi mais subestimada. Aos poucos, estamos começando a falar de oceano, trazendo o tema. Acho que a Fundação Tara tem feito um esforço importante junto da ONU, junto da Unesco, para levar a essas instâncias a problemática não só do oceano, mas especificamente do microbioma e do plâncton, que com certeza é muito importante. Os oceanos são o maior ecossistema do planeta.

Pela importância que têm para as pessoas e por regular o clima, ao transportar calor dos trópicos para as regiões temperadas, acredito que precisamos de uma COP só para os oceanos. Já é tempo de pensarmos em uma coisa assim. As problemáticas são muitas, e diferentes dos ecossistemas terrestres. Temos questões como a sobrepesca e a acidificação do oceano, causada pelo aumento do dióxido de carbono na atmosfera. Ele acaba entrando por difusão no oceano e baixa o pH do oceano. Isso tem um impacto tremendo nos corais e na biodiversidade. São muitas problemáticas, que justificariam uma COP só para os oceanos.

Peixe ao lado de pedaços de plástico encontrados em seu interior
Praticamente toda a fauna marinha está infestada por partículas de plásticoFoto: Reuters/B. Yip

Quais são os riscos mais iminentes para esses microbiomas marinhos, tão importantes para a regulação climática?

Em primeiro lugar, o aumento da temperatura. Isso é uma realidade. Os oceanos de latitudes maiores já estão se tropicalizando. Observamos esses consórcios microbianos típicos de oceano tropical indo cada vez mais para latitudes maiores. Profundas mudanças estão acontecendo nos polos, e isso é muito problemático, porque é nessas regiões que temos as mudanças de temperatura em ritmo muito mais acelerado do que nas regiões temperadas, por exemplo.

Esses consórcios microbianos dos polos são muito mais sensíveis a essas mudanças de temperatura. Logo, podemos desde já antecipar graves impactos, tanto no funcionamento da cadeia alimentar, no sustento dos organismos maiores, quanto nesse serviço ecossistêmico que leva o CO2 para o fundo do mar.

Outra problemática grave é a dos plásticos, que vão se quebrando ao longo do tempo, se degradando, e atingem o tamanho do plâncton. Os pedaços maiores viram microplásticos que a gente não vê e acabam sendo confundidos com plânctons pelos organismos marinhos. Eles acabam ingerindo os plásticos, que não são digeridos e afetam a saúde do animal. Ele não sente mais fome e acaba morrendo com o plástico no estômago.

Se fizéssemos uma investigação, acharíamos pedaços de plásticos e microplásticos no estômago de praticamente todos os organismos do oceano hoje. É um problema muito grave, para o qual também não vemos qualquer solução no curto prazo. Precisamos discutir a redução do uso de plástico e, principalmente, banir aquele plástico de uso único, que se usa durante alguns minutos e já se joga fora. Se pudéssemos lidar com isso, já seria um avanço. Alguns países já têm metas, com datas para a proibição dos plásticos de uso único.

Temos ainda o problema do pH, de que eu acabei de falar. Essa questão é muito séria, especialmente para os corais, que são muito sensíveis a pequenas mudanças de pH. A acidificação dos oceanos é um produto do aumento do CO2 na atmosfera, então também tem impactos grandes na vida marinha.

Além da sobrepesca, outro problema gravíssimo, há pressões múltiplas: as zonas de baixo oxigênio estão se multiplicando ao redor do planeta, com o aumento da urbanização em zonas costeiras. É o que chamamos de zonas mortas, são zonas que ficam praticamente anóxicas, sem oxigênio. O mar está sofrendo com estressores múltiplos, como dizemos em nosso jargão.

Praia de Cabo de Santo, Pernambuco, poluída com óleo
Praia de Pernambuco poluída com óleoFoto: Reuters/D. Nigro

As estratégias de mitigação dos efeitos climáticos sobre o oceano devem ser elaboradas por governos nacionais?

O problema é que o oceano não é de ninguém. Os países têm as zonas econômicas exclusivas, mas as águas internacionais não têm um país ou um dono que possa se responsabilizar. Já deveríamos estar negociando internacionalmente um tratado para as águas internacionais, como existe na Antártica, por exemplo. São águas de ninguém. Então, se você quiser jogar óleo, ninguém vai se responsabilizar.

Essa lógica é reforçada pela intensificação da procura por recursos minerais, e não só o petróleo. O pré-sal já é uma realidade, mas outra realidade que começa a ser mais frequente é a mineração em águas profundas. Só não se faz ainda porque é muito caro, mas em águas rasas já se exploram minerais – e o fundo do mar é muito rico em minerais. Hoje em dia, não existe nem legislação, nem debate. Do outro lado da balança, temos todas as pressões, poluições e o aquecimento global. Nesse momento, a balança do oceano está tendendo muito para o lado ruim, e as consequências podem ser muito nefastas.

O aquecimento global está afetando as correntes marinhas, e esses processos podem amplificar ainda mais os efeitos das mudanças climáticas. Imaginemos que a Corrente do Golfo diminua sua velocidade. Ela vai transportar menos calor do trópico para a Europa, e os invernos no continente passam a ser muito mais rigorosos do que os atuais, nos níveis do Canadá: na mesma latitude, temos invernos de -20°C, -30°C. Isso não acontece na Europa graças a essa corrente. É apenas um exemplo do que pode vir a acontecer se a gente amplificar mais os problemas que já estamos vivendo hoje em dia.

O oceano é o motor do clima do planeta. Se alterarmos alguma pequena pecinha desse motor, com certeza haverá consequências. E os microrganismos fazem parte desse sistema. Eles estão fazendo o trabalho deles, levando o carbono para o fundo e transformando em petróleo. Ao longo de milhares de anos no fundo do mar, esse plâncton vira o pré-sal, o petróleo. O grande problema é que estamos extraindo esse petróleo numa taxa muito mais rápida, pelo menos quatro vezes maior, do que a taxa em que o plâncton está levando o carbono para o fundo. Esse desequilíbrio é preocupante. Temos que desacelerar essa taxa de retirada, para dar tempo ao plâncton e ao oceano de se recuperarem.

Deveríamos pensar em um sistema de administração compartilhada dos oceanos?

O fundamental é que os órgãos internacionais possam assinar verdadeiros acordos, em espaços como a COP, em que o oceano não seja visto pelos governos na perspectiva simples de "o que eu posso tirar dele, o que eu posso ganhar?". Atualmente, os governos partem para as negociações pensando em quanto vão conseguir ganhar em termos de acesso a recursos, rotas marítimas ou coisas do gênero. Eu acho que deveríamos ter um ponto de partida diferente.

Temos o exemplo da Antártica, que transformamos em um santuário de pesquisa internacional. É um ambiente saudável, de pesquisa, e todos os países que estão lá se responsabilizam por uma parte. No Ártico e no mar aberto, já é diferente. Vemos uma série de países reivindicando áreas maiores, zonas econômicas exclusivas maiores, mas baseados em interesses imediatos e financeiros, unicamente.

Deveríamos partir para acordos internacionais mais baseados no uso sustentável, tendo em conta também a parte social, de pesca com pequenas embarcações, e também a parte ambiental da manutenção dos recursos no longo prazo. Este seria um caminho interessante das negociações, mas de qualquer maneira, tem que ser dar em nível internacional e pela via diplomática.