Premiado, filme resgata herói judeu esquecido
30 de maio de 2016"Eu queria representar de todo jeito esse papel do Fritz Bauer", conta o ator Burkhart Klaussner, protagonista de Der Staat gegen Fritz Bauer (O Estado contra Fritz Bauer, em tradução livre). "De todo jeito, de todo jeito. Porque eu sempre quis representar um herói, um herói imperfeito. Não existe tanta gente desse tipo na Alemanha."
Bem recebido pela crítica, o filme foi o grande vencedor do Prêmio do Cinema Alemão, levando não só a Lola de Ouro de melhor longa metragem como também outras cinco estatuetas, incluindo de melhor direção e roteiro original. A premiação concedida pela Academia de Cinema em Berlim, na última sexta-feira (27/05), é considerada a mais importante da categoria no país.
Fritz Bauer (1903-1968) foi jurista, judeu e homossexual. Como procurador-geral na República Federal da Alemanha, logo após a Segunda Guerra Mundial, ele foi a força impulsionadora do processamento jurídico dos crimes dos nacional-socialistas, contra toda oposição.
Natural de Stuttgart, ele sobrevivera ao "Terceiro Reich" como socialista, após alguns meses de prisão no exílio. Em seu próprio país, empenhou-se numa luta – muitas vezes solitária – para submeter os criminosos nazistas à Justiça. Desse modo, ele insistia em evocar uma época que a Alemanha do "milagre econômico", no fim da década de 50 e início da de 60, queria simplesmente deixar para trás.
Por um lado, por motivos políticos: o chanceler federal Konrad Adenauer havia integrado o país na aliança ocidental e se empenhava por uma conciliação com o jovem Estado de Israel. Por outro lado, pelos mais diversos motivos biográficos, já que tantos alemães haviam sido nazistas convictos.
Inimigo na própria terra
Na República Federal recém-fundada, os velhos nacional-socialistas rapidamente se acomodaram no novo sistema. Suas redes de influências ainda funcionavam, na Justiça, nos serviços secretos, na economia, na política. Para todos eles, Bauer era incômodo, para dizer o mínimo.
Por isso, o diretor e corroteirista Lars Kraume escolheu para seu filme o apropriado título Der Staat gegen Fritz Bauer – ou seja, "O Estado contra Fritz Bauer" e não "Fritz Bauer contra o Estado". Enquanto o jurista realizava seu trabalho de esclarecimento, desvendando os crimes contra a humanidade dos nacional-socialistas, o Estado e seus muitos integrantes procuravam impedi-lo e proteger os velhos camaradas.
Logo no início do filme, um influente funcionário do Departamento de Informações comenta: "A questão é: por quanto tempo vamos poder nos dar ao luxo de ter um procurador-geral desses." Pouco depois, vem a tão citada frase de Bauer: "Minha própria repartição é território inimigo."
Herói esquecido
Uma das maiores ações de Fritz Bauer foi localizar na Argentina o foragido Adolf Eichmann e levá-lo ao tribunal. Na qualidade de Obersturmbannführer (equivalente a tenente-coronel) da SS, Eichmann fora responsável pela deportação de milhões de judeus para morte certa. Como não podia confiar no próprio país, Bauer colocou Israel na pista do nazista, que foi julgado e executado naquele país em 1962.
Todas essas são informações chocantes para o espectador, ainda mais pelo fato de esse nobre jurista, obcecado por justiça, quase não ser mais lembrado na Alemanha reunificada.
Mesmo muitos de seus colegas só ficaram sabendo dele depois que se divulgou o papel de Bauer nos assim chamados Processos de Auschwitz, a partir de 1963. O filme Im Labyrinth des Schweigens (Labirinto de mentiras, em Portugal), de 2014, lembra essa ação jurídica espetacular, concluída no icônico ano de 1968.
O que também torna a história de Bauer ainda mais chocante é que esse entrelaçamento de poder e Justiça, de culpa e irresponsabilidade, ainda hoje vem à tona de tempos em tempos: na América Latina, no Oriente Médio, por toda parte onde o direito só serve às classes dominantes. E nada permite vislumbrar que tal estado de coisas vá ter um fim.
Anos de chumbo
Kraume, de 42 anos, já várias vezes laureado com o conceituado Prêmio Adolf Grimme de televisão, fala dos "anos incrustados" da jovem República Federal da Alemanha, um "tempo obscuro". Como a geração das testemunhas vai se extinguindo, é hora para uma nova visão na literatura e no cinema, comenta o cineasta.
A obra de Kraume se apoia fortemente no trabalho dos atores. Dentre eles, destaque tanto para Burkhart Klaussner, de 65 anos, representando o protagonista com grandiosa seriedade, quanto para Ronald Zehrfeld, de 38 anos, absolutamente convincente no papel do jovem promotor público Karl Angermann.
A direção de fotografia em O Estado contra Fritz Bauer é tão precisa quanto discreta, cenografia e figurino primam pelos detalhes. Como obra para a telona, ele traz cenas de ação, sequências na Argentina e Israel. Contudo, com seu caráter existencialista e dramático, o filme funciona quase como uma peça teatral. E desde as primeiras imagens, Klaussner, talvez o maior ator alemão de sua geração, cuida para dar presença viva a seu Fritz Bauer.
"Talvez um Snowden"
Traição da pátria é um conceito-chave nesse filme. O procurador-geral conhecia o risco de agir contra os interesses estatais, em sua ânsia de impor o direito e a justiça. Seus adversários de extrema direita sabiam que podiam derrubá-lo com a acusação de traidor da pátria – se não bastasse a observação "Esse judeu é veado".
O também corroteirista Kraume diz igualmente considerar Bauer "um herói moderno". Um homem que, "contra o espírito da época, manifestou sua opinião a qualquer custo". Hoje em dia, prossegue, há bem poucos desses "verdadeiros heróis": talvez um Edward Snowden.
Em memória dos mais importantes acusadores dos crimes nazistas, em 2014 o ministro alemão da Justiça, Heiko Maas, criou o Prêmio de Estudos Fritz Bauer para Direitos Humanos e História Contemporânea Jurídica.
A obra de Kraume é uma homenagem a esse jurista alemão, um thriller e um filme da época atual. O Estado contra Fritz Bauer estreou mundialmente em agosto passado, no 68º Festival de Locarno, na Suíça, onde recebeu o Prêmio do Público.