Entre altos e baixos
19 de fevereiro de 2010De topete postiço e jaqueta de lantejoulas vermelhas, o ator Jorge Calvo compareceu à exibição para a imprensa de Nacidas para sufrir (Nascidas para sofrer), um dos filmes espanhóis apresentados na seção Panorama do Festival Internacional de Cinema de Berlim. Saído de trás de uma cortina, ele desceu as escadarias do cinema, de microfone em punho e com música de fundo, cantando com toda a arte que um bom trovador traz nas veias.
O apresentador – que naquele mesmo momento se dispunha a cumprir sua função em festival tão sério, dando boas vindas ao diretor do longa-metragem, Miguel Albadalejo – levou alguns minutos para captar a graça da situação. Mas aí entendeu: são os espanhóis, sempre dispostos a uma brincadeira. E pôde rir com o resto do público.
Mas o público não soltou gargalhadas só com o atrevimento de Calvo, como também se divertiu com o filme, uma curiosa história de amor entre duas mulheres, grandiosamente interpretadas por Adriana Ozores e Petra Martínez. "Qual é a mensagem deste filme?", perguntaram a Albadalejo. "Mensagem? Não, eu fiz um filme. Se quisesse mandar uma mensagem, teria usado um celular." E a plateia explodiu em aplausos.
Produções espanholas
Nacidas para sufrir é uma comédia original que cutuca tópicos da Espanha profunda. Em certos momentos, sua trama divaga, porém é, sem dúvida, uma película muito bem interpretada, engraçada e divertida. Bom entretenimento é também El mal ajeno (O mal alheio), a obra de estreia de Óskar Santos, realizada com o apoio de Alejandro Amenábar, igualmente apresentada na seção Panorama Special do festival berlinense.
O cinema espanhol não brilha pela abundância nesta Berlinale. Fora as duas produções citadas e o curta-metragem Mi outra mitad, da valenciana Beatriz M. Sanchís, há dois outros filmes produzidos na Espanha, porém dirigidos por latino-americanos: Fin (Fim) do argentino Luís Sampieri, e Cuchillo de palo (Faca de pau), da paraguaia Renate Costa.
Fin é apresentado sob a rubrica Forum e, infelizmente, não é um filme que se possa recomendar: planos longos, ritmo lentíssimo, diálogo quase inexistente, nenhuma tensão, absolutamente previsível. Em uma palavra: chato. Talvez fosse uma história para um curta, talvez sustentável com atores mais experientes.
Cuchillo de palo, por outro lado, é uma das melhores obras em castelhano que se pôde ver durante o 60º Festival Internacional de Cinema de Berlim. Neste documentário, seu primeiro longa-metragem, Renate Costa percorre as ruas de Assunção tentando descobrir o que aconteceu com seu tio, morto em circunstâncias curiosas. O resultado é uma descrição extremamente sensível da situação dos homossexuais paraguaios, na época da ditadura e hoje em dia, sem cair em banalidades, deixando que falem os protagonistas.
Argentina, Colômbia, Bolívia e México
Quando a contemplação substitui a história e se torna a razão única de um filme, aí o cinema contemplativo se torna problemático. É o que ocorre com o argentino El recuento de los daños (A contagem dos danos), que poderia ser uma boa produção, se sua trama não fosse tão transparente e apresentasse um pouco mais de tensão, algum elemento de surpresa. O coringa da ditadura não vale para tudo.
Também o colombiano El vuelco del cangrejo (A virada do caranguejo) é um filme lento, com belas imagens e refrescantes golpes de humor oportuno. O diretor, Óscar Ruíz Navia, que o dedicou a sua falecida avó, procura relatar algumas das dificuldades sociais da Colômbia de hoje, através da confrontação entre dois vizinhos: enquanto um defende o modo de vida tradicional, o outro tenta instaurar o que, de seu ponto de vista, equivaleria à modernidade e ao progresso.
Zona Sur (Zona Sul) é o lugar de onde a família de Juan Carlos Valdivia não quer sair. Incluída na seção Panorama, a obra representa a Bolívia na atual Berlinale. Uma bela vila em locação privilegiada serve como microcosmos para a história de brancos e indígenas, de relações humanas e sociais, e para refletir as mudanças ocorridas naquele país sul-americano. Para tal, Valdivia toma como exemplo sua própria infância.
Neste ano comemorativo dos movimentos de independência na América Latina, chega do México Revolución, reunindo dez curtas de dez autores distintos que, juntos, formam um bom longa-metragem. São histórias ternas, brutais, humorísticas e tristes – como a própria revolução – e que, como ela, permitem interpretações múltiplas.
"Pacífico fala dessa gente que venera Ché Guevara e que logo acaba se convertendo nos [Hugo] Chávez e [Evo] Morales da América Latina" – comentou uma jovem à saída do cinema, referindo-se ao episódio dirigido por Diego Luna. Este próprio descreveu assim suas intenções:
"Com meu curta, quis fazer dois exercícios: falar da terra, em que mãos ela está hoje, e do que foi feito desse lema revolucionário que dizia 'a terra é de quem trabalha'. Por outro lado, quis refletir sobre onde está a revolução em mim. E falar sobre ser pai, que é a grande mudança que acaba de acontecer em minha vida."
Autor: Luna Bolívar Manaut / Augusto Valente
Revisão: Alexandre Schossler