Protagonistas e interesses em jogo na Líbia
20 de maio de 2014Três anos após o início do levante contra o ditador Muammar Kadafi, a Líbia parece ter novamente chegado à estaca zero. O país continua sem uma Constituição, e o governo não tem capacidade de ação. O caos recente começou na sexta-feira (16/05), quando soldados sob o comando do general reformado Khalifa Haftar iniciaram uma operação militar contra brigadas islâmicas radicais na cidade de Bengasi, no leste do país. Pelo menos 75 pessoas foram mortas nos combates. No domingo, os tumultos chegaram à capital Trípoli, onde milícias atacaram o Parlamento, provocando mais mortos e feridos. Nenhuma das partes parece forte o suficiente para tomar o poder por completo.
Quem é Khalifa Haftar?
Ele foi comandante das Forças Armadas durante o regime Kadafi. No final dos anos 80 foi para a dissidência e se mudou para os Estados Unidos. Lá, se uniu à oposição no exílio. Na fase inicial da revolução, em fevereiro de 2011, retornou à Líbia e apoiou os combatentes da resistência militar em Bengasi. "Ele combateu Kadafi como um dos principais líderes rebeldes", afirma Günter Meyer, do Centro de Estudos Árabes, sediado em Mainz. Haftar teria contatos com a agência de inteligência americana CIA desde quando era ativista da oposição. De acordo com informações do canal de notícias Al Arabia, Haftar é apoiado na sua luta contra os islamistas pelos governos da Arábia Saudita e do Egito.
Haftar fez parte da luta de poder pela liderança do Exército. Numa nova Líbia, ele originalmente deveria assumir a reconstrução das Forças Armadas. Tal plano foi frustrado pela adoção de uma lei, em meados de 2013. Na época, o Parlamento foi sitiado por milícias, que forçaram a aprovação de uma lei estabelecendo que todos aqueles que detiveram uma posição do governo Kadafi fossem impedidos de exercer qualquer mandato oficial ou político, mesmo tendo contribuído para a queda de Kadafi, como era o caso de Haftar. "Ele se sentiu excluído pela nova lei", ressalta Meyer.
Quem faz parte das milícias de Haftar?
Em fevereiro, Haftar ameaçou num discurso televisivo derrubar o Parlamento, que considera ilegítimo. Pouco tempo depois, seus comandados do autodenominado Exército Nacional Líbio ocuparam duas bases militares no leste do país. Algumas milícias tribais se uniram a ele para combater os islamistas em Bengasi. Além disso, ele recebe atualmente apoio das influentes Brigadas Sintan, da capital Trípoli. Foram elas que atacaram o Parlamento. "Atualmente, o país está dividido entre partidários de Haftar e apoiadores dos membros do governo", diz Meyer. Ainda é difícil avaliar a amplitude do apoio de que o general reformado dispõe. Haftar e seus combatentes não se consideram milícias, mas parte das Forças Armadas. Um número crescente de membros das Forças Armadas e de milícias está do lado deles.
Quais os objetivos de Haftar e seus comandados?
Ele afirma ser contra as milícias radicais e seus apoiadores entre os deputados. Haftar diz querer expulsar as forças islâmicas e seus partidários em todo o país. Um vácuo de poder surgiu na Líbia, facilitando a ação de grupos radicais islâmicos, por causa da incapacidade do governo de transição de montar nos últimos três anos um exército viável, unido e forte.
Após a tomada do Parlamento, o comandante da polícia militar, Mochtar Fernana – também um aliado de Haftar – leu uma mensagem na televisão. "O povo líbio não permitirá que o seu país se torne um celeiro de terroristas e extremistas", disse. Ele afirmou que o Parlamento foi dissolvido e que uma comissão recém-eleita começará a escrever a Constituição. O ataque dos homens de Haftar contra os islamitas no leste do país tem uma certa simpatia entre a população, devido à impotência de um exército ainda incipiente. Analistas não descartam que o apoio possa aumentar ainda mais caso Haftar seja bem-sucedido. Haftar já havia tentado no ano passado derrubar o governo, sem sucesso.
Qual a influência do governo líbio?
O poder entre cidades, tribos, regiões e governo central não obteve um equilíbrio nos últimos três anos, desde a derrubada e o assassinato de Kadafi. Durante a revolução surgiram muitos centros locais de poder, nos quais cidades e tribos competem pelo domínio político e econômico – com base, em parte, em milícias. Os conselhos locais, formados nas cidades e regiões, desfrutam de diversos níveis de autoridade, dependendo da localidade. O governo de transição até agora não conseguiu colocar os numerosos grupos armados e milícias tribais sob o controle central de um comitê de segurança em Trípoli.
As milícias receberam armas e dinheiro para se subordinarem ao Exército, mas em vez disso, fizeram cada vez mais reivindicações e expandiram suas posições de poder, sem se unir juntarem às forças nacionais. "O governo está impotente, e o país é governado por milícias rivais", frisa Günter Meyer. Apesar de o primeiro-ministro interino, Abdullah al-Thinni, permanecer no cargo, ele comunicou há algumas semanas sua renúncia, pois sua família foi ameaçada pelas milícias. Seu sucessor, eleito pelo Parlamento, Ahmed Maitieg, tem que primeiro formar um novo governo antes que possa assumir.
Que papel a instabilidade na Líbia desempenha para os países vizinhos?
Com a queda de Kadafi e o vácuo de poder resultante, as forças islamistas na Tunísia, Argélia e Mali conseguiram se fortalecer, pois recebem armas fornecidas pela Líbia. "De acordo com o serviço secreto egípcio, também existe na Líbia um campo de treinamento da Al Qaeda", observa Meyer.
O que o Ocidente pode fazer?
O governo dos EUA teme que a Líbia possa se tornar um país central para a promoção do terrorismo no mundo. "Haftar e o governo dos EUA têm um interesse comum nesse ponto. Mas não sabemos se há um contato direto", relata Meyer. Forças da Marinha dos EUA na Sicília já foram colocadas em estado de alerta. Cerca de 5 mil soldados tunisianos também foram deslocados para a fronteira.
Durante uma conferência internacional sobre a Líbia no início de março, em Roma, os ministros do Exterior da Alemanha, Frank-Walter Steinmeier, e da França, Laurent Fabius, haviam prometido ajudar o governo líbio a garantir o controle de depósitos clandestinos de armas. Meyer vê a promessa com ceticismo. "Com o atual equilíbrio de poder, não vejo forma de se apoiar um governo que não conseguiu em três anos formar um Exército nacional confiável. O poder está extremamente fragmentado." Além disso, arsenais clandestinos já foram levados para o outro lado da fronteira ou são usados por várias milícias no país.