Pé na Praia: O valor do ouro
7 de setembro de 2016Roseane dos Santos estava ocupada quando a encontrei num parquinho no Recreio. Um ajudante lhe entregava esferas de ferro, ela apertou os olhos e arremessou o peso, urrando. As esferas aterrissaram alguns metros adiante no gramado. "Vamos deixar o lançamento de disco para um outro dia", disse a atleta. "Aqui tem muita gente passando."
Nesta semana, a atleta de 44 anos representa o Brasil pela última vez nos Jogos Paralímpicos. No passado, já tinha conseguido duas medalhas de ouro, na Olimpíada de Sydney, no ano 2000. "Vai ser muito difícil ganhar mais uma medalha", disse a musculosa mulher negra. E aí contou o que tinha acontecido com sua perna.
Na verdade, a história da perna não tem nada de extraordinário. Roseane dos Santos, que cresceu em Recife, perdeu-a em um acidente de trânsito. O que tem de especial é que esse acidente trouxe uma vida melhor para a jovem – que, na época, trabalhava como empregada doméstica. Um treinador a descobriu. Ela se mudou para o Rio, foi aceita em um programa de treinamento e um dia conseguiu a Bolsa Atleta do governo.
Roseane dos Santos passou a ganhar prêmios, a quebrar recordes. Encontrou patrocinadores. Conseguiu morar num pequeno apartamento no Recreio, um bairro de classe média, e ajudar financeiramente sua família no Nordeste. Mais tarde, sobreviveu a um câncer de garganta. Ainda estava na quimioterapia quando pegou um voo para São Paulo. Estava indo para uma competição esportiva. Sentia-se terrivelmente enjoada, mas compareceu mesmo assim, contra os conselhos do seu médico. Está considerada curada do câncer desde 2015.
Na verdade, quase todos meus amigos brasileiros conhecem essa história. Ela já apareceu nos jornais daqui incontáveis vezes. Todo mundo diz que ela é admirável. Uma lutadora implacável, que demostra o ser humano quando ele realmente se esforça! Quem realmente quer alcançar algo, consegue!
Surpreendeu-me que a própria atleta, por sua vez, veja as coisas de forma diferente. "Considero isso uma bobagem" me disse. "Sempre quis tantas coisas e, como uma pessoa pobre, eu simplesmente não teria conseguido nada."
Roseana cresceu em um dos bairros mais pobres de Recife: na casa de sua avó, junto com 14 familiares em um espaço pequeno. Uma vez, quando ainda tinha sua perna, se lembra, queria comprar um par de tênis. Sua mãe deixou bem claro que esse sonho não poderia se realizar.
Sempre amou bonecas. "Até hoje não consigo passar por uma loja de brinquedos sem olhar para a prateleira de bonecas", diz a atleta e ri. Seu olhar tímido meio que diz: "sou uma maluquete, mesmo!" Antigamente ela tinha uma boneca. Achou "Wanderley" numa lata de lixo, consertou o furo em sua barriga com agulha e linha. "Quase não dava para ver que Wanderley estava costurado naquele lugar", diz a atleta.
O parque em que Roseane dos Santos pratica é bem ao lado de seu apartamento, e é minuciosamente cuidado. Pais empurram os velocípedes de suas crianças, pessoas correm na grama e algumas chamam Roseana – "Rosinha!" – de maneira encorajadora. Todos conhecem a vizinha atleta, que é famosa e faz parte do lugar. Na sombra de um agrupamento de árvores, domésticas enchem balões de ar para uma festa de aniversário infantil. Duas crianças de uma favela aproximam-se de bicicleta e observam os preparativos. Perguntam se podem pegar um balão, mas as empregadas os espantam.
Não faz muito tempo, Roseane foi fazer uma palestra para crianças de uma escola, para motivá-las. Foi numa parte pobre da cidade. Antes de começar, o diretor chamou a atleta num canto e sussurrou: desculpa, as crianças daqui são difíceis, são de outro meio. Roseane diz que sabe até hoje como é isso: ser mantido à distância, enquanto pobre, de outras pessoas de mais posses.
"Às vezes, estou sentada em casa e fico olhando para minhas duas medalhas", diz a atleta quando termina seu treino. Seu irmão recolhe as esferas, ela prossegue em sua cadeira de rodas. "Chego até a conversar com minhas medalhas. Digo: Vocês são tão pequenas, mas valem mais do que eu!" Olhei para ela, indagativo. O que quer dizer com isso? Roseana riu sua risada aberta. "As pessoas olham primeiro para minhas medalhas e depois para mim. Se eu não tivesse nenhuma medalha, olhariam em outra direção."
Thomas Fischermann é correspondente do jornal alemão Die Zeitna América do Sul. Na coluna Pé na praia, publicada às quartas-feiras na DW Brasil, faz relatos sobre encontros, acontecimentos e mal-entendidos - no Rio de Janeiro e durante suas viagens pelo Brasil. É possível segui-lo no Twitter e no Instagram: @strandreporter.