Quando meninas são obrigadas a casar
26 de outubro de 2015Na foto de pessoas desaparecidas usada pela polícia holandesa, Fatema Alkasem usa um lenço elegante, com estampa de leopardo. O olhar dela é sério e um pouco desafiador, como o de tantas outras meninas dessa idade. Mas Fatema não é uma adolescente comum. A garota de 14 anos é casada e há provavelmente dois meses deu à luz seu primeiro filho. Desde 31 de agosto, a jovem síria e seu esposo, dez anos mais velho que ela, sumiram.
Os dois haviam chegado à Holanda, passando pela Alemanha, algumas semanas antes e estavam num centro para acolhimento temporário de refugiados em Ter Apel. Um dia, Fatema não compareceu a uma consulta no hospital. Na Holanda, acredita-se que ela tenha sido levada para fora do país.
O caso da "noiva-criança" em plena Europa ganhou as manchetes. No Twitter, a política holandesa Attje Kuiken exigiu, em reação, que o reconhecimento de casamentos desse tipo fosse impedido. Ela disse achá-los inaceitáveis. "Crianças devem poder ser crianças", defendeu a política.
Até o caso Fatema ter se tornado público, estrangeiros podiam obter, na Holanda, o reconhecimento de um casamento com uma adolescente de 16 anos, desde que houvesse um registro oficial no lugar onde a união aconteceu ou no país de origem dos cônjuges.
Atualmente o Parlamento holandês prepara uma nova lei que deverá elevar para 18 anos o limite legal mínimo de idade para o reconhecimento do matrimônio. A nova legislação deverá entrar em vigor em dezembro. O ministro holandês da Imigração, Klaas Dijkhoff, afirmou em entrevista à emissora britânica BBC que, no futuro, tais relações não deverão mais ser reconhecidas. "Se um homem é casado com uma esposa menor de idade, não vai mais ser possível trazê-la para cá", afirmou o ministro.
Sem família, sem marido, sem defesa
Na Alemanha, um dos principais destinos dos refugiados que fogem da guerra civil na Síria, as autoridades também estão preocupadas com possíveis casos de "noivas-crianças" entre aqueles que chegam ao país.
O Departamento Federal de Migração e Refugiados da Alemanha afirma que não há nenhum caso conhecido, mas organizações de defesa dos direitos da mulher, como a Terre des Femmes, afirmam que o número de ocorrências vai aumentar. A diretora do escritório alemão, Christa Stolle, diz que a situação mais comum é aquela em que o marido, que já está na Alemanha, busca a esposa menor de idade, a chamada reunificação familiar.
Stolle esteve há pouco tempo na Turquia, onde pôde ter uma ideia da situação. Ela conta que algumas meninas, de 15 e 16 anos, estariam esperando nos campos de refugiados pelo momento em que seus maridos as levarão para a Alemanha. Muitas já teriam um ou dois filhos e estariam completamente indefesas sem marido e família.
Numa situação como essa, Stolle defende que as meninas possam se unir a seus esposos na Alemanha. "Depois disso, é nossa tarefa dedicar cuidados especiais a elas", acrescenta a ativista. Por exemplo, ajudando-as a iniciar um curso de alemão ou explicando que, na Alemanha, elas não têm que permanecer nesse casamento.
Claudia Söder, da organização de ajuda humanitária e de assistência a mulheres Medica Mondiale, tem opinião semelhante, mas ressalva que não se deve ignorar a dependência que essa jovens têm de seus maridos e sogros. "Não podemos esperar que elas simplemente deixem o marido de uma hora para a outra", argumenta.
Para chegar até lá, é necessário aconselhamento e a construção de uma relação de confiança. "Mas ainda estamos longe disso na Alemanha", afirma. A fim de não pôr as jovens em perigo, as ativistas tentam sempre envolver a família e explicar aos maridos as vantagens de não ser o único responsável pelo sustento da família. Stolle quer sobretudo criar condições para que as meninas possam se desenvolver, sem ferir as regras de suas tradições.
Proteção da violência sexual
Nesse contexto, um tema recorrente é a chamada honra familiar. Em suas famílias, muitas mulheres e meninas são vistas como fiadoras dessa honra e devem cuidar para que ela seja mantida. Isso inclui a virgindade, que uma mulher deve levar consigo para o casamento.
No entanto, especialmente em regiões de guerra, como a Síria, agressões sexuais e estupros ocorrem regularmente. Söder diz que todos já tiveram contato com um caso desse tipo.
Para a família, um estupro constitui uma grande vergonha porque a honra da filha é manchada. Nesse caso, um casamento proporciona uma solução. "Espera-se que, por meio do matrimônio, elas não estejam mais expostas a agressões sexuais", explica Söder. Diante disso, dá-se pouca importância ao fato de as meninas ainda serem legalmente muito jovens. Muitas vezes, isso até mesmo não tem nenhuma importância. "As pessoas não se importam com isso, e o Estado também não se interessa", afirma Stolle, da Terre des Femmes.
Segundo ela, em situações extremas, motivos econômicos também exercem um papel importante. Muitas famílias necessitam do dinheiro do dote que recebem por uma filha. Diante de tudo isso, o número de "casamentos precoces" triplicou nos campos de refugiados sírios nos últimos três anos.
Na Alemanha já houve casos mesmo antes da atual onda de refugiados. Stolle relata o caso de uma jovem de 16 anos, cujos pais de origem turca queriam que ela se casasse. Na Alemanha, isso é possível por meio de uma autorização judicial especial, mas os pais já haviam planejado um casamento religioso islâmico para a jovem.
Depois de os pais a retirarem da escola e a trancarem em casa, a garota recorreu à Terre des Femmes. Isso aconteceu há cinco anos. Atualmente, a jovem de 21 anos vive sob outro nome num lugar desconhecido e tem um emprego, relata Stolle. "Ela agora é uma mulher autoconfiante e muito grata a nós."