Quinze de julho de 2023. Faz 35 graus em Berlim e os ânimos na frente do Olympiastadion, o histórico e gigantesco estádio da cidade, também estão quentes. Nesse dia, a megapopular banda alemã Rammstein, cujo vocalista, Till Lindemann, é acusado de abusos e violência contra fãs, fez seu primeiro show na cidade após o escândalo ser divulgado no início de junho. Do lado de fora do estádio, bem ao lado da entrada dos fãs da banda, 300 pessoas se reuniram em uma manifestação contra a realização do show e em apoio às vítimas.
O protesto foi organizado pela aliança feminista Keine Bühne für Rammstein (Sem palco para Rammstein), que também fez uma petição online pedindo o cancelamento do show. Na segunda-feira, a petição tinha mais de 75 mil assinaturas. Isso mostra como o clima que cerca os shows na capital (realizados sábado, domingo e nesta terça-feira) está polarizado. O estádio abriga 60 mil pessoas e todos os ingressos para as três noites estavam esgotados, o que deixou os manifestantes ainda mais revoltados.
"Nenhum palco para suspeitos, agora e depois", "Rammstein nunca mais!" gritam os manifestantes, em um espaço cercado pela polícia por barras de segurança. Uma fita também mantém uma distância de segurança entre os fãs que entram para o show e aqueles que se manifestam a favor das vítimas e contra o sexismo.
Estou no espaço da manifestação, que reúne uma minoria barulhenta cercada pela polícia que impede que fãs do Rammstein entrem no espaço. Ou seja, o clima é de choque cultural.
A manifestação é pacífica. Mas o clima de guerra fria começa já no metrô para o Olympiastadion. Segundo os organizadores, devíamos descer em uma estação antes do estádio, para evitar encontrar os fãs. Dentro do vagão, fãs com camiseta da banda e manifestantes se olham desconfiados.
Um grupo de garotas carregando cartazes se levanta. Chego perto delas e falo: "estou indo para a manifestação, posso ir com vocês?" "Achei que você era uma fã do Rammstein", diz um rapaz, que carrega um cartaz escrito "Nenhuma tolerância com suspeitos". "Não se preocupe, estamos juntas", diz uma menina de uns 20 e poucos anos, toda vestida de preto e com moletom e capuz apesar do calor. No caminho, vimos uma menina de uns 7 anos acompanhada pelo pai indo para o show. "Olha aquilo, que tristeza, como pode?", comenta Ana (nome fictício).
Esse era apenas o início do horror que iríamos presenciar. A manifestação na frente do estádio começa com um clima bom. Mas não demora muito para o clima mudar. Conforme o horário de abertura dos portões se aproxima, mais e mais fãs da banda chegam. Cerca de 200 fãs, incluindo mulheres, se posicionam fora da faixa de segurança que nos protege em uma espécie de "cinturão". Eles filmam as manifestantes, bebem cerveja levantando os copos e riem no maior estilo "orgulho ogro". Alguns tentam invadir a área e são impedidos pela polícia.
Antes, as manifestantes (eram principalmente mulheres, mas homens também estavam presentes) já haviam colocado faixas para fora do "cercadinho", para que os fãs lessem. Um deles dizia: "Rammstein fora dos palcos e nos tribunais".
"Ataques misóginos"
Em um dos momentos mais impactantes da manifestação, a caixa de som reproduz depoimentos de mulheres que acusam Lindemann de as terem drogado e abusado em festas que ocorriam depois dos shows. Nessa hora, os fãs do lado de fora riem. E, o que mais me chocou, muitas mulheres riem também. "Rammstein! Rammstein! Rammstein", os fãs gritam, erguendo a mão.
De dentro do cercado, o grito de guerra também é provocador: "Rammstein é uma merda e vocês são a prova", gritam muito alto as cerca de 300 pessoas ali. Muitos dedos do meio são levantados de ambos os lados. Em certo momento, um fã do Rammstein, fantasiado de "diabo", abaixa as calças e mostra a bunda para a manifestação.
"Vergonha de vocês! Vergonha de vocês!", gritam os manifestantes, enquanto os fãs de Rammstein continuam a gritar: "Rammstein, Rammstein!". "Pensem bem, podia ser a filha de vocês, podia ser sua namorada, que vergonha", fala a oradora no microfone, olhando para os fãs. Eles respondem rindo e mostrando o dedo do meio. Em alguns momentos, alguns deles gritam "piranhas", entre outros ataques misóginos.
Sim, é tudo muito bizarro. E, em alguns momentos, um pouco assustador.
Obviamente, não são todos os fãs que parecem violentos. Há muitos casais de meia idade e famílias. Mas os que provocam são aqueles que ostentam sem vergonha o orgulho ogro. Do tipo, "bebo muita cerveja, sou macho, não estou nem aí". Repito de novo: algumas mulheres também se comportam como ogras, o que torna tudo mais triste, já que Lindemann é acusado de abusar de fãs mulheres e muito jovens. Onde foi parar a empatia?
Mais tarde, vejo no Twitter que alguns fãs (dos que olhavam para a manifestação com cara de ódio e desprezo) usavam símbolos que remetem ao neonazismo.
Mais acusações
O combate entre esses dois grupos tão distintos ainda não acabou. Segundo o jornal Bild, duas pessoas foram presas (e depois liberadas) no domingo por suposta tentativa de sabotagem nos cabos de som do estádio onde o Rammstein fez o concerto.
O clima pode esquentar também porque na segunda-feira novas denúncias foram divulgadas pelo jornal Süddeutsche Zeitung e a emissora NDR, desta vez contra o tecladista da banda, Christian Flake Lorenz, que teria drogado e tido relações com duas fãs, uma em 1997 e outra em 2022. A guerra parece só estar começando.
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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo "02 Neurônio". Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.