Rei da Bélgica lamenta passado colonial do país no Congo
30 de junho de 2020O rei da Bélgica apresentou pela primeira vez na história do país os "seus mais profundos pesares pelas feridas" infligidas durante o período colonial belga no Congo, território que hoje compõe a República Democrática do Congo (RDC).
Em uma carta enviada nesta terça-feira (30/06) ao presidente da República Democrática do Congo, Félix Tshisekedi, por ocasião do 60º aniversário da independência do país, o rei Philippe escreveu: "Gostaria de expressar meus mais profundos pesares por essas feridas do passado, cuja dor agora é reacendida pela discriminação ainda presente nas nossas sociedades".
"Na época do Estado Livre do Congo [1877-1908, quando o território africano era efetivamente administrado como uma propriedade do ex-rei Leopoldo 2°], foram cometidos atos de violência e crueldade, que ainda pesam na nossa memória coletiva", assegurou Philippe , que lidera a monarquia belga desde 2013.
"O período colonial que se seguiu [o do Congo Belga, de 1908 a 1960, quando o Estado belga assumiu o território] também causou sofrimento e humilhação", acrescentou.
O rei Philippe afirmou o compromisso de "combater todas as formas de racismo".
"Encorajo a reflexão iniciada pelo nosso parlamento para que a nossa memória seja definitivamente pacificada", continuou.
A carta do rei foi divulgada cerca de duas semanas depois que o irmão mais novo do monarca, o príncipe Laurent, afirmar não acreditar que o rei Leopoldo 2° "tenha feito sofrer a população" da atual República Democrática Congo.
"Muitas pessoas que trabalharam para Leopoldo 2° realmente cometeram abusos, mas isso não significa que o rei tenha cometido abusos", disse o príncipe.
Na Bélgica, a morte do afro-americano George Floyd, asfixiado no final de maio por um polícia branco em Minneapolis, deu novo impulso ao debate sobre a violência do período colonial no Congo e o papel do rei Leopoldo 2° (1835-1909) na morte de milhões de pessoas na África.
Atrocidades
Leopoldo 2° tomou posse do Congo nos anos 1880. Ao contrário de outras tantas colônias europeias da época, o chamado Estado Livre do Congo não foi inicialmente administrado por um Estado. Era efetivamente uma propriedade particular do rei belga.
Leopoldo propagandeou inicialmente seu interesse no território como parte de uma espécie de projeto humanitário para melhorar a vida dos habitantes locais. Mas era apenas uma fachada de um projeto para saquear as riquezas da região. Por 30 anos, os agentes do rei impuseram uma política de trabalho forçado no território, extraindo imensas quantidades de marfim e borracha.
Os habitantes locais que não conseguissem entregar cotas desses materiais para os representantes do rei eram punidos, muitas vezes tendo suas mãos decepadas. Milhões de pessoas também sofreram com doenças conforme a situação da região se deteriorou. Estimativas de historiadores apontam que até 10 milhões de congoleses morreram sob o jugo de Leopoldo 2°.
As condições da colônia particular do rei também provocaram um dos maiores escândalos internacionais do início do século 20, conforme missionários, ativistas, jornalistas, escritores relataram o que estava acontecendo no Congo. Ativistas europeus chegaram a fundar uma associação internacional para pressionar por mudanças. A escala das atrocidades na colônia particular provocou consternação até mesmo entre os outros poderes coloniais europeus, que também governavam usando violência.
A repercussão teve efeito parcial, levando os outros países a pressionar o rei a desistir de sua empreitada no Congo. Leopoldo cedeu, e a colônia então passou a ser administrada pelo Estado belga. As condições melhoraram, mas a área ainda continuou na condição de colônia, com uma minoria belga decidindo sobre o destino de milhões de pessoas.
Os habitantes locais ainda teriam que esperar mais cinco décadas pela independência. Quanto a Leopoldo, ele morreu em 1909, sem ser punido pelos seus crimes. Antes de ceder a colônia ao Estado belga, ele ainda assegurou que os arquivos do chamado Estado Livre do Congo fossem destruídos.
Nas décadas seguintes, as atrocidades no Congo foram sendo esquecidas no seu país natal, e Leopoldo passou a ser associado mais com um período de intenso progresso da Bélgica do final do século 19, no qual o país foi palco de uma série de grandes obras públicas. A discussão sobre o papel do rei na África só acabaria sendo reavivada no final dos anos 1990, quando passou a ser abordada por historiadores. Desde então, estátuas do rei espalhadas pela Bélgica passaram a ser vandalizadas.
JPS/afp/ap/ots
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