Representante das vítimas de abuso na Irlanda critica atuação do Papa
14 de fevereiro de 2013Deutsche Welle: Qual foi sua primeira reação ao saber da renúncia do Papa?
John Kelly: Para mim e para a maioria das vítimas de abuso por parte de clérigos, foi de indiferença. Pela simples razão de que ele não deixará saudades. Havia uma grande esperança de que este Papa em particular iria fazer muita coisa, que iria questionar as coisas dentro do Colégio dos Cardeais, que iria fazer algo contra o abuso infantil. Ele pediu desculpas e isso é fantástico, mas, no fim, só nos deu falsas esperanças. Era tudo retórica, porque nada foi adiante com substância.
Por que você acha que ele falhou em fazer mais?
Este Papa é um acadêmico. Ele é muito competente no sentido de proteger a instituição Igreja. Mas acredito que ele seja, de fato, responsável por compactuar com este abuso, ao não ter investigado mais profundamente os casos. Escrevi várias cartas ao Papa e, numa delas, disse: "Veja, o senhor tem o poder de fazer alguma coisa. Essas vítimas não obtiveram justiça por parte das autoridades do Estado. E o senhor tem o poder de fazer alguma coisa sob a lei canônica. Pode eliminar ou suspender suas licenças, há inúmeras penalidades que pode aplicar". Mas ele não fez nada disso, o que é muito deprimente, o que me deixa sem esperanças com relação ao futuro.
Tendo em vista o que você acabou de dizer, você acha que a renúncia do Papa é quase uma forma de a Igreja tentar colocar um ponto final em todas essas ações, e seguir caminho, de certa maneira "enterrando" tudo isso com ele?
Os escândalos foram muito bem divulgados e, na realidade, não acho que ele lidou com isso corretamente. Talvez outras pessoas dentro do conclave dos cardeais, os mais conservadores, tenham provavelmente dito que chegou a hora de ele sair, pois isso se perpetuou por 13 anos e eles não veem nenhuma possibilidade de solução. Eles provavelmente pensam: "ele fez o melhor que pôde". Isso é bem possível. É possível apenas especular a respeito, mas é bem possível que ele tenha sido colocado para escanteio.
Bento 16 nomeou vários cardeais, em um espaço de tempo relativamente curto. Você acha que organizou tudo de forma a garantir que o próximo Papa seja também outro de pensamento conservador?
Honestamente, sempre tive a impressão de que este Papa era um Papa interino. Eles precisavam de tempo, e o que ele fez foi assegurar que não haveria dissenso, que qualquer sucessor iria basicamente manter essa imagem papal e cumprir suas funções, com a certeza de que não haverá qualquer liberalização dentro da Igreja. Durante 13 anos, eles fizeram o que puderam para criar uma imagem diferente, uma imagem de que estavam tratando dos escândalos etc, mas todos nós sabemos que as mesmas pessoas estão na Irlanda e em todo o mundo. Eles continuam atuando, não houve mudança alguma. E sabemos disso.
Vimos o que aconteceu na Primavera Árabe, e talvez o espírito da revolução esteja chegando aqui também. Porque as pessoas não querem perder sua religião, mas também não querem tolerar esse dogma da hierarquia. Há milhares de anos, a Igreja vem operando num clima secreto. E tudo gira em torno de poder e controle. Aqui na Irlanda, eles exercem controle sobre o governo. Quando não concordam com o governo, pegam o microfone para dizer: "Não votem neles". Eles intimidaram as pessoas a fazerem parte da Igreja e enviaram envolopes depois a elas depois pedindo dinheiro. E quando elas não tinham suficiente, as denunciavam na frente de todo mundo, em público. Ou seja, isso é abuso de poder e controle.
O que você acha que as pessoas poderiam fazer? Que tipos de reação você tem observado na Irlanda?
Falo com as pessoas e sei o que elas pensam, 80% dos irlandeses se autoconsideram católicos, mas se você perguntar se confiam no pontífice ou no Vaticano, dirão que não. Acho que as pessoas estão cansadas. Elas adotaram a mentalidade do "lá vamos nós outra vez". Há milhares de padres que também querem mudança, e eles estão na linha de frente. Na Irlanda, há mais ou menos 20 anos, você tinha algumas centenas de seminaristas. No ano passado, eram apenas dois, de forma que a Igreja está sendo prejudicada. Você já deve ter ouvido a expressão "brincando enquanto Roma está em chamas". É isso exatamente o que está acontecendo agora. Mas essa mentalidade do século 14 é simplesmente insustentável no futuro.
Como você analisa o momento em que o anúncio foi feito?
Temos a Páscoa, muitas coisas para acontecer. Tenho a impressão de que ele possa ter sido posto de lado para que alguém ocupe seu lugar. Acho que eles podem ter ficado com medo de sua fragilidade, de que ele não esteja mais em condições de lidar com todos os escândalos. Acho que estão em busca de alguma pessoa mais nova, mais ágil, alguém com mais lucidez, capaz de conduzir as políticas que eles querem. Trata-se provavelmente uma revolução doméstica. Apesar de parecer que ele se retirou voluntariamente, acredito que tenha sido gentilmente afastado e empurrado. Essa é a única explicação. Isso nunca aconteceu em mais de 500 anos.
Mas em dezembro de 2012, por exemplo, esse Papa lançou o feed do Vaticano no Twitter. Você não acha que eles ainda estavam tentando criar uma imagem mais revolucionária e moderna dele?
Na minha opinião, o Twitter pode ter sido o motivo da ruína. Você só pode controlar as pessoas por um tempo, vimos isso na Primavera Árabe. A Igreja é uma organização secreta, ancorada no poder e no controle. Se você pensa no abuso que foi praticado na Irlanda por tanto tempo, você percebe que o abuso de crianças ou da sociedade só pode acontecer numa atmosfera de ignorância ou pobreza. De forma que o Twitter pode ter sido a causa da decadência, pois eles simplesmente não entendem isso. A Igreja costumava ter medo da ciência, e o Twitter é parte da ciência. Não acho que a maioria dos cardeais queira a liberalização do mundo.
Que transformações você gostaria de ver?
Todos nós gostaríamos que houvesse justiça. Não tivemos justiça neste país. Apesar de um inquérito estatal do governo, afirmando que dezenas de milhares de crianças sofreram abusos, nenhum dos acusados foi preso pelo que cometeu. A esperança é tudo o que temos. Sem esperanças, não temos nada. E espero, de alguma forma, que o sucessor, mesmo que seja conservador, veja o que está vindo das bases e o que tem que ser mudado.
Como você descreveria o papado de Bento 16?
Se eu tivesse que descrever o pontífice com uma única palavra, eu usaria "fracasso". Um fracasso total. Ele só estava interessado em manter as coisas como estão. Não houve reforma, nem mudança, nada. Quando você tem alguém assim, talvez o melhor adjetivo seja anônimo, pois ele não fez favores à Igreja, nem às pessoas a seu redor. É bom que ele tenha renunciado, mas é possível que tenhamos dias mais sombrios pela frente com seu sucessor. Mas acredito honestamente que eles irão, na hora, ser colocados de lado, pois sinto que o sucessor só estará em condições de sair impune disso por um tempo. Os tempos têm que mudar, e a revolução irá acontecer.
John Kelly é fundador e coordenador da organização Sobreviventes de Abuso Infantil (SOCA, na sigla em inglês) na Irlanda. Ele foi membro, durante muitos anos, de uma instituição católica. Kelly acusa a Igreja de diversos absusos contra sua própria pessoa, inclusive de chicoteamento com cintos de couro e estupro. Apesar dessas experiências, ele ainda se diz católico.
Autora: Emma Wallis (sv)
Revisão: Francis França