Sírios relatam violência e tortura na fuga da guerra para o Brasil
16 de janeiro de 2014Após sucessivos dias de choques elétricos, o coração de Mohammed parou. A polícia secreta síria considerou-o morto e despejou-o na rua. Por mais inacreditável que pareça, esse foi um momento de sorte na trajetória de Mohammed Y. S. desde a fuga da guerra civil na Síria, onde nasceu, até o refúgio no Brasil.
A parada cardíaca abriu as portas da prisão depois de duas semanas de torturas. Mohammed foi encontrado por desconhecidos e encaminhado para um centro hospitalar, onde passou por uma cirurgia e ficou dois meses em recuperação. O período na cadeia, em maio de 2011, deixou legados incômodos no peito e na cabeça: "Tenho lembranças ruins e uma máquina dentro do coração", diz, apontando para o peito, onde carrega um marca-passo, uma das consequências dos choques elétricos.
Junto com ele, 320 sírios foram reconhecidos como refugiados pelo governo brasileiro desde o início do conflito entre rebeldes e o regime de Bashar Al-Assad, em 2011. A maioria – 283 – chegou em 2013, tornando a síria a nacionalidade com o maior número de concessões de refúgio no Brasil no ano passado. A guerra civil no país árabe já matou mais de 120 mil pessoas, pelos cálculos da ONU.
Ida a um país distante
Quando os protestos contra o regime começaram, Mohammed trabalhava com os rebeldes, ensinando-os a transmitir vídeos e fotos pela Internet. "Acredito na revolução. A Síria hoje é uma ditadura, a família de Assad controla o governo. Eu preciso de liberdade, de democracia, de um país melhor", explica. Por esse motivo, a Mukhabarat, como é chamada a polícia secreta síria, prendeu e torturou Mohammed, em busca de informações sobre os rebeldes.
Ao sair do hospital, o refugiado planejou sua fuga para a Turquia. Ele viajaria primeiro, depois iriam a mulher e filhos. Mohammed ficou duas horas retido no aeroporto: "Não sabia se iriam me levar de volta para a prisão. A Síria é uma bagunça, existem várias polícias e cada uma trabalha por si. Não sei o que aconteceu, mas me deixaram ir."
Após oito meses na Turquia, a família conseguiu um visto para o Brasil, onde vive desde julho de 2013. Assim como Mohammed, existem atualmente 333 refugiados sírios em território brasileiro, boa parte deles em São Paulo.
Segundo o representante do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) no Brasil, Andrés Ramirez, a comunidade síria em São Paulo é muito importante no cenário internacional. "Há uma tradição de imigração dessa nacionalidade, com cerca de 3 milhões de pessoas com ascendência síria no país", lembra.
Segundo a agência da ONU, 97% dos mais de dois milhões de refugiados sírios no mundo se deslocam para países vizinhos, como Líbano, Turquia, Egito, Jordânia e Iraque. Além de ser difícil obter recursos para as passagens de avião, a decisão de ir para um país distante significa que o retorno também se torna mais complicado.
Outro motivo importante para permanecer na região é a proximidade cultural. "Um país árabe é mais fácil. A religião, o idioma, a roupa, tudo é mais parecido", afirma o representante da ONU.
No Brasil, a violência das ruas
Para os refugiados que optam pelo Brasil, a adaptação é lenta. Hoje com 36 anos, Mohammed tenta reconstruir a vida em São Paulo. Com o apoio da comunidade síria, alugou um apartamento pequeno no Brás, bairro tradicional de imigrantes na capital paulista. Lá a família frequenta a Mesquita do Pari, da Liga da Juventude Islâmica Beneficente do Brasil. Formado em eletrônica, Mohammed trabalha com programação, fazendo sites para os colegas da comunidade. Em março, os filhos começam a estudar em uma escola pública.
A vida parece estruturada, mas a situação de Mohammed é frágil. Bastou um lance de escada para que o seu coração falhasse. O acidente, há poucos meses, por sorte não foi fatal. Mas os refugiados não carregam apenas sequelas físicas. Como grande parte dos colegas, Mohammed viu muitas pessoas morrerem em seus braços durante a guerra, e as lembranças são traumáticas.
Ao chegar ao Brasil, a situação de insegurança permanece. Muitos dos refugiados contam terem sido assaltados à mão armada. "Tenho medo da violência aqui. Na Síria não há problema de roubo. Com a guerra, há, sim, muitas mortes. Mas, antes, a vida lá era tranquila", diz Mohammed.
Amer Masarani, um dos responsáveis pelo grupo Coordenação da Revolução Síria no Brasil, que recebe e apoia os refugiados em São Paulo, afirma que eles ficam vulneráveis: "Os refugiados vêm sem conhecer ninguém, sem dinheiro, sem falar uma palavra de português. Às vezes passam noites dormindo no aeroporto, sem ter para onde ir."
Masarani conta que uma das refugiadas foi estuprada ao chegar a São Paulo. "Foi na Praça da República [centro da capital paulista], à noite, na frente do marido", fala, com revolta.
Ilegais no Brasil
Apesar da decisão do governo brasileiro de conceder vistos humanitários aos sírios em setembro de 2013, Masarani assegura que os refugiados estão chegando com visto de turista, com validade de apenas três meses.
Segundo ele, os sírios precisam solicitar o refúgio no país, mas a entrevista com a Polícia Federal pode demorar até nove meses. "Até lá, o visto já expirou e eles ficam ilegais. Sem documentos, não podem fazer nada: alugar uma casa, ter uma linha de celular, colocar os filhos na escola, ter um trabalho, nada", relata.
Questionado sobre os problemas enfrentados pelos sírios, o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), órgão ligado ao Ministério da Justiça, não respondeu à consulta da DW Brasil.
Outro grande problema para os refugiados é o idioma. Na Mesquita do Pari, cerca de 70 sírios estudam português três vezes por semana, três horas por dia.
"Eu não sei nada do Brasil", diz a professora, voluntária, para a turma. Hesitantes, os alunos repetem a frase. A aula segue, só interrompida pelos horários das orações. Mohammed, aluno do curso, resume a dificuldade com o idioma e o choque cultural: "O primeiro contato é difícil, porque somos muito diferentes."
Sonho de retornar
A saudade da terra natal e o desejo de voltar é quase unânime. "A Síria é a minha mãe", responde, incisivo, Ahmad, de 24 anos, que refugiou-se no Brasil em junho de 2013. Oriundo de uma família de classe media alta, outro refugiado, Adam, de 34 anos, resume: "Lá éramos reis e aqui somos escravos".
Mas agora é impossível voltar. "Há morte por todos os lados, pessoas são assassinadas no meio da rua", conta Mohammed, que se preocupa com os parentes que ficaram para trás. Sua mãe está numa área relativamente segura de Damasco, onde há eletricidade, alimentos e acesso à internet.
Ele teme mais pelo irmão, que permaneceu numa zona perigosa nos arredores da capital Damasco, onde há bombardeios constantes. "Quando ele consegue me telefonar, diz: 'Estou com fome. Eu e os meus filhos não temos o que comer'."
De acordo com o refugiado, sua cidade natal está completamente destruída. Sua casa, bombardeada. Para ele, entretanto, isso é mais um motivo para regressar: "Preciso reconstruir o meu país".