Saúde ou soberania: dilema na propaganda de cigarro
3 de dezembro de 2002O Parlamento Europeu já aprovara anteriormente a ampla proibição da publicidade dos produtos de tabacaria. No início desta semana, o Conselho de Ministros da União Européia seguiu o mesmo caminho. Com isto, os países membros da UE têm prazo até julho de 2005 para transformar a decisão em lei nacional.
A menos que uma sentença judicial suspenda todo o processo: o governo de Berlim está examinando a possibilidade de recorrer contra a proibição. A primeira tentativa da UE, de restringir a publicidade de cigarros, foi anulada dois anos atrás pela Corte Européia de Justiça, após um recurso apresentado pela Alemanha.
Segundo Alexander Müller, que representou o governo alemão no Conselho de Ministros, Berlim não discorda da decisão por motivos de saúde pública. Sob tal aspecto, a Alemanha é inteiramente favorável à proibição. Mas a medida envolve, no seu entender, uma questão de princípio: "Trata-se de saber, se a União Européia tem o direito de intervir no mercado publicitário em nível nacional."
Questão econômica
O governo alemão insiste que a União Européia não pode regulamentar assuntos internos dos Estados membros. E teme que a proibição antitabagista abra um precedente. Com base nela, pode haver posteriormente uma restrição da publicidade de bebidas alcoólicas que, consumidas em excesso, causam um mal tão grande como o cigarro. Ou até mesmo uma restrição nos anúncios de automóveis, sob a alegação de serem nocivos ao meio ambiente e provocarem acidentes fatais nas ruas e estradas.
No entanto, mais do que uma pretensa ameaça à soberania nacional, a questão da publicidade de cigarros é uma contenda de caráter econômico. Ela envolve a grande imprensa (que veicula um grande número de anúncios), o público das competições esportivas (em especial da Fórmula-1) em todo o mundo e até mesmo as finanças públicas, que se beneficiam em larga escala dos fumantes, através do elevado imposto sobre os produtos de tabacaria.
Imprensa arruinada
Para muitos jornais e revistas alemães, a proibição dos anúncios de cigarros pode significar o fechamento. As propagandas do setor de tabacaria representam entre 10 e 30% do faturamento total das publicações. Numa época em que a crise da indústria editorial alemã atinge em larga escala até mesmo os órgãos mais tradicionais da grande imprensa, a perda de tais anúncios pode significar o fechamento de inúmeros jornais e revistas. Segundo Volker Nickel, da Confederação Alemã das Empresas de Publicidade (ZAW), as perdas anuais deverão ser da ordem de 200 a 230 milhões de euros.
Outro aspecto ainda pouco estudado é a provável conseqüência mundial no setor esportivo. As empresas de tabacaria são grandes patrocinadoras de eventos esportivos – a Fórmula-1 é o exemplo mais patente disto. Tão logo a proibição entre em vigor, as emissoras européias de televisão não poderão mais transmitir as corridas de Fórmula-1, nas quais os carros exibem anúncios de marcas de cigarro. E isto, independente de onde seja realizada a prova: no Brasil, na Austrália ou na própria Europa.
A Bélgica, que se adiantou à proibição européia e adotou as restrições antes da decisão de Bruxelas, já sentiu a represália da FIA e do circo da Fórmula-1: o GP da Bélgica, realizado tradicionalmente em Spa-Francorchamps, foi cancelado em 2003.
Precedente na internet
Ao incluir a internet nas restrições, a União Européia abriu também um precedente. A veiculação de anúncios através da rede de computadores deverá ser submetida, pela primeira vez, a regulamentos legais. Não se pode avaliar ainda, até que ponto será possível controlar e impor a proibição.
A internet não conhece os limites de penetração de outras mídias: nem as limitações geográficas de propagação (como no caso dos jornais e revistas), nem o alcance relativamente limitado das emissões (como no caso do rádio e da televisão). Teoricamente, um portal ultramarino pode perfeitamente oferecer conteúdo dedicado por exemplo aos usuários alemães, com financiamento através da publicidade de cigarros. Para a União Européia, seria extremamente difícil impedir tais "ataques externos".
Política incoerente
Para muitos críticos, a posição assumida pelo governo alemão encerra uma elevada dose de hipocrisia. A concordância com o argumento de proteção da saúde pública é vista como mera alegação sem maior substância. A posição de Berlim parece ditada não pelo Ministério da Saúde, mas sim pelo Ministério das Finanças. A arrecadação bilionária do imposto sobre produtos de tabacaria não pode faltar aos cofres públicos, especialmente agora, quando o déficit do orçamento público já transgrediu até mesmo as diretrizes do Pacto de Estabilidade do euro.
O presidente do Conselho Federal de Medicina da Alemanha, Jörg-Dietrich Hoppe, alertou as autoridades alemãs para a incoerência da sua política imediatista. Cerca de um quarto dos jovens alemães, a partir dos 15 anos de idade, fuma diariamente. Serão enormes os prejuízos que tal hábito causará à economia do país, dentro de poucos anos, em decorrência de doenças crônicas e agudas, provocadas pelo tabagismo. Tais prejuízos serão muito maiores que a arrecadação do imposto sobre o tabaco.
Segundo Hoppe, torna-se necessária uma política coerente em relação ao tabagismo. E ela inclui, a seu ver, a prevenção através de campanhas de esclarecimento, o aumento drástico do imposto sobre o cigarro e a proibição completa de todo tipo de publicidade dos artigos de tabacaria.