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Sangue foi tema de exposição em Frankfurt

Neusa Soliz30 de janeiro de 2002

Dois museus de Frankfurt apresentaram uma insólita exposição: "Sangue – arte, poder, política e patologia", procurando analisar o "elixir da vida" microscópica e macroscopicamente em todos os seus significados.

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Doenças transmitidas pelo sangue - parte científica da exposição "Sangue"Foto: presse

Terminou domingo (27), em Frankfurt, uma exposição singular intitulada Sangue - arte, poder, política e patologia. Interdisciplinar por explorar vários aspectos da temática, ela apresentou cerca de 160 quadros, livros e objetos, divididos entre a Kunsthalle Schirn e o Museu de Artes Aplicadas.

Símbolo de vida e morte

Poucas substâncias têm tanto valor simbólico. Derramado desde o nascimento do ser humano, o sangue é o símbolo da vida e da morte, de saúde e doença, de força ou de impotência, de sacrifício, redenção, renovação. O sangue também foi usado como meio de manter o poder em mãos de certas dinastias e até como justificativa para a expansão geopolítica de povos e raças.

Enquanto a exposição romana Sangue e Arena, encerrada recentemente no Coliseu, limitou-se aos jogos sangrentos dos gladiadores, a de Frankfurt procurou demonstrar como mudou a forma de considerar o "elixir da vida" através de diferentes épocas e culturas.

Os sacrifícios sangrentos dos maias

O capítulo Sangue e Sacrifício, com a exposição de punhais e dos estranhos instrumentos com que os maias realizavam suas sangrias rituais ou o brutal sacrifício de seus inimigos, foi certamente o mais estarrecedor. Um dos objetos era um disco de ouro do século IX, representando a cerimônia em que se arrancava o coração de um prisioneiro.

Os maias acreditavam que os deuses criaram o ser humano a partir de uma espiga de milho, que preencheram com o seu próprio sangue. Isso explicaria o ritual de gratidão, retribuindo com o que tinham de mais precioso: o próprio sangue. Por mais absurdo que hoje isso pareça, o ato de entrega estava ligado à sua cosmologia. O sangue era a substância mágica que visava apaziguar a ira dos deuses e manter o equilíbrio da ordem social e do mundo, seja garantindo a colheita ou o nascer do sol todos os dias.

O sangue como sede da alma entre o micro e o macrocosmo

Na Antigüidade, o sangue, sob a forma do sacrifício de animais, era de grande significado para se entrar em contato com a alma dos mortos. Sua ajuda era tida por imprescindível na profecia do futuro. A Odisséia, de Homero, é o primeiro livro que menciona esse uso mágico do sangue. Os mortos precisavam "beber" o líquido rubro para recuperar sua memória e sua consciência. Só então podiam ver o futuro. A associação do sangue com a consciência, portanto, era muito antiga. A filosofia grega não entendia o sangue apenas como a essência do pensamento, como o igualava à alma.

Empédocles, um dos mais importantes filósofos gregos pré-socráticos, desenvolveu o homocentrismo no século V a.C. O sangue tinha um papel central na sua fisiologia. Englobando os ensinamentos de Pitágoras, ele afirmava que o universo e o corpo humano se baseavam no número quatro. Os quatro elementos - ar, água, terra e fogo - corresponderiam às quatro forças cósmicas – céu, mar, terra e sol. Como o ser humano é parte do universo, seu corpo deveria funcionar da mesma forma, compondo-se dos mesmos elementos. A capacidade de compreensão do ser humano se basearia na correspondência entre os elementos internos e os do mundo exterior.

Na análise que Empédocles fez dos mecanismos de percepção sensorial, baseada na analogia com os elementos, o sangue, como substância primordial da vida, desempenha um papel de destaque. Tudo dependeria de sua composição e da proporção dos elementos: a capacidade de percepção de cada um, seu grau de inteligência e até seu temperamento.

O sangue e os humores

Galeno atribuiu os diferentes tipos de caráter às secreções internas. Assim, a fleuma (muco) corresponderia ao elemento água e ao tipo fleumático; a bílis negra, à terra e ao tipo melancólico; a bílis amarela, ao elemento fogo e ao colérico; e o sangue, ao ar e ao tipo sangüíneo. Com o passar do tempo, a divisão em quatro foi ampliada com correspondências às quatro estações do ano, às partes do dia, aos 12 signos do zodíaco (múltiplo de quatro), aos quatro evangelistas, etc.

Coube a Pólibos, um sobrinho ou talvez neto de Hipócrates, fundir, pela primeira vez, a patologia dos humores com a cosmologia de Empédocles, em seu De natura hominis, formulando a ordem quádrupla que se transformou num cânon, sendo determinante durante toda a Idade Média e o Renascimento. A exposição apresentou algumas representações, em livros de diferentes épocas, em que todas as correspondências são anotadas num círculo, dividido em quatro partes.

Sangrias terapêuticas

Entre os livros raros e antigos expostos na Schirn Kunsthalle, alguns abordavam os assuntos mais curiosos. Manuais de medicina do século XV, como o Fasciculus Medicinae, de Johannes von Ketham, por exemplo, traziam o "mapeamento" do corpo humano conforme os lugares ideais para as sangrias, realizadas desde o tempo dos romanos com fins terapêuticos, se não com incisões, com as sanguessugas.

Alguns exemplares vivos do viscoso verme podiam ser vistos no último andar do museu, na parte científica da exposição, que transportava o visitante, de repente, a um mundo estéril e contemporâneo, com microscópios e lâminas, instrumentos já do século XX, ao lado da documentação das primeiras tentativas de transfusão e pequenos laboratórios interativos, onde se podia medir a pressão, o pulso e determinar o tipo sangüíneo, a descoberta que tornou possível a transfusão.

O século XX da genética e das performances chocantes

Às possibilidades abertas pela genética foram dedicadas três salas com vídeos e computadores. Alguns resultados do projeto genoma humano tratam do sangue, tratamento e cura de doenças como Aids, malária e outras que são transmitidas pelo sangue. Só o advento da genética acabou com a idéia de que o sangue era o grande transmissor da hereditariedade. Grandes fotografias e pinturas baseadas na composição molecular do sangue, como os trabalhos Semen & Blood e The Morgue, de Andres Serrano, foram colocadas nos corredores circulares da galeria, dos quais saíam as diversas salas.

Como o sangue inspirou artistas plásticos contemporâneos podia-se ver na parte intitulada Sangue e Patologia, onde estavam os trabalhos dos austríacos Hermann Nitsch e Günter Brus, que organizaram sangrentos happenings na década de 70. Em fotografias e vídeos, os visitantes acompanharam algumas dessas ações, em que foram usadas vísceras e a carcaça de animais abatidos, com seu sangue pingando em corpos nus.

Imagens de uma estética bárbara, de força ritual e expressiva que, se provocaram o desagrado de muitos visitantes na Frankfurt do novo milênio, devem ter causado um total repúdio na Viena de 30 anos atrás. Mas provocação e choque eram o programa de Nitsch e Brus. Na mesma linha situa-se a performance de Marina Abramovic, The Thomas's Lips (Os lábios de São Tomás), que chegou à automutilação, ao cortar na própria pele a estrela de cinco pontas invertida, o símbolo da magia negra, tendo que ser socorrida pelo público.

Dinastias tentam perpetuar seu sangue azul

O capítulo Sangue e Dinastia mostrou como o "sangue azul" ditava a política de casamentos das famílias no poder. A exposição exibiu retratos dos Habsburg, da Áustria, e dos Romanov, a família dos czares russos, cuja história foi marcada por trágicos acontecimentos. Elas servem para exemplificar os casamentos de conveniência entre nobres, mesmo que fossem parentes. O intuito era o de assegurar descendentes, garantir a continuidade das dinastias de "puro sangue europeu" e ampliar suas possessões territoriais. Entre os retratos estava o da Imperatriz Maria Leopoldina, do século XVII, certamente uma das ancestrais da imperatriz brasileira de mesmo nome.

Herdeiro hemofílico

- No caso dos Romanov, que proscreviam da corte russa os nobres que se casassem abaixo de sua categoria real, o tiro saiu pela culatra no casamento do czar Nicolau II com a princesa alemã de Hessen, Alexandra Feodorovna: ela herdera de sua avó, a rainha Vitória da Inglaterra, a hemofilia, que acabou transmitindo a seu único filho homem, o herdeiro do trono, Zarevitsh Alexei. Mas se ele nunca chegou a reinar, isso não se deve à doença do sangue e sim ao sangrento tributo que exigiu a revolução bolchevique de 1917. O czar, sua esposa, as quatro princesas e Alexei foram assassinados na madrugada de 18 de julho de 1918, sendo apenas as primeiras vítimas de uma grande tragédia histórica.

O sangue de Cristo e a redenção

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Ilustração do sangue de Cristo como fonteFoto: presse

Na exposição não poderiam faltar as representações de Cristo na cruz e na via crucis, o sangue derramado pela redenção dos pecados do mundo, uma das partes de maior valor simbólico e artístico, intitulada Sangue e Salvação. Entre as obras sacras de diferentes épocas, encontravam-se pinturas e gravuras de Lucas Cranach, Palma il Giovane, Albrecht Dürer e Luis de Morales.

Não apenas o sangue como também as feridas de Cristo são objeto de pinturas. De algumas jorra o líquido precioso que é recolhido em cálices, estabelecendo uma ligação direta entre a consagração litúrgica do vinho e o sangue do filho de Deus. Essa conexão não existe na iconografia protestante após a reforma de Lutero. A adoração do Sagrado Coração de Jesus, de José de Páez (1720-1790), mostra um imenso coração levitando entre anjos e adorado pelos santos Inácio de Loyola e Aloísio Gonzaga, demonstrando que, para o culto, o elemento central do auto-sacrifício de Cristo era seu amor pela humanidade.

O sangue na ideologia nazista

Fraca na exposição foi apenas a parte que tentou esboçar a ideologia do "sangue e da terra" dos nazistas, que serviu de justificativa ao regime de Hitler para seus avanços territoriais. Até há pouco tempo, só era considerado alemão e tinha direito à nacionalidade quem "tivesse sangue alemão", isto é, fosse filho de pais alemães. A perpetuação da raça ariana e a cruzada contra os judeus, considerados inferiores, foram representados na exposição apenas por alguns cartazes da época, um deles explicando as "Leis de Nurembergue", que, entre outras coisas, proibiram o casamento com pessoas de sangue judeu. No entanto, isso poderia se explicar pelo fato de a temática nazista ser objeto de exposições históricas e temáticas, enquanto o ambicioso projeto dos museus de Frankfurt tratou de abordar uma ampla gama de aspectos.