"Medo de subir, gente, medo de cair, gente, medo de vertigem quem não tem?". Lembrei desse trecho da canção Ciranda da Bailarina, de Chico Buarque, enquanto assistia às competições classificatórias das meninas da ginástica artística nos Jogos Olímpicos de Paris no domingo (28/07). Elas brilharam. E falo especialmente das brasileiras, que se classificaram para as finais por equipe, de Rebeca Andrade, a brasileira que é uma das melhores do mundo (ganhou medalhas de ouro e prata nos Jogos de Tóquio e se classificou para quatro finais individuais em Paris) e, claro, da americanaSimone Biles, a ginasta mais premiada da história (conquistou sete medalhas em Jogos Olímpicos, sendo quatro de ouro, e 23 medalhas de ouro em mundiais). As duas competem nesta terça-feira (30/07) com seus times na final por equipes.
Quando eu comecei a gostar desse esporte, a musa era a romena Nadia Comaneci. E quem foi criança nos anos 70-80 deve lembrar disso. Elas eram impecáveis. Não pareceriam ter medo de cair, nem de subir e nem de vertigem. E eram, algumas delas, crianças como nós. A gente não sabia na época, mas muitas delas (e até Nadia) eram submetidas a abusos - e, sim, deviam ter medo. Só não podiam falar.
Os tempos mudaram. E em algumas coisas para melhor. Uma delas é o fato das ginastas de hoje falarem abertamente sobre saúde mental, sobre a importância de fazer terapia e também admitirem que têm medo (de cair, de subir e de vertigem). Ou seja, elas são humanas.
Em tempos de perfeição em redes sociais, nada melhor do que heroínas de carne e osso como Rebeca Andrade e Simone Biles, que admitem medos e falhas e falam abertamente sobre a importância de fazer terapia.
As meninas que hoje cuidam da saúde mental como prioridade são sobreviventes de um ambiente supertóxico, como Biles. Em 2018, o médico Larry Nasser, que trabalhava para a equipe de ginástica artística dos Estados Unidos, foi condenado à prisão por abusar sexualmente de centenas de mulheres e meninas. Entre as vítimas, estava Biles. De acordo com ela, o trauma do abuso foi a principal causa de seus "apagões" em Tóquio, que fizeram com que ela desistisse da competição.
Biles virou praticamente uma embaixadora da saúde mental ao abandonar os Jogos de Tóquio, em 2021. A atleta fez isso no momento em que era vista como a favorita absoluta e carregava nas costas toda a pressão de ser a melhor ginasta do mundo. Sua decisão, além de mostrar uma coragem incrível, pode ter salvado sua vida. Afinal, todos nós podemos ter bloqueios e crises. Isso faz parte da vida. Agora, no caso das ginastas, esses bloqueios podem fazer com que elas sofram lesões permanentes ou até morram.
"Toda vez que vou saltar fico morrendo de medo, pensando: ‘e se eu escorregar, e se eu bater a cabeça'?", diz a atleta no documentário O retorno de Simone Biles, disponível na Netflix. Um dos vídeos exibidos na minissérie de dois episódios é uma espécie de diário online gravado por Biles durante os Jogos Olímpicos de Tóquio. Chorando muito, ela diz: "Estou tendo esses bloqueios mentais. E não está sendo divertido. Está sendo assustador. Eu estou perdendo minhas habilidades. Está ficando perigoso".
Rebeca Andrade, quase psicóloga
Biles está de volta e brilhando. Assim como Rebeca Andrade, que além de ginasta é estudante de Psicologia. Sim, enquanto alguns jogadores de futebol continuam insistindo em falar absurdos como "não preciso de terapia porque não sou louco" (frase que teria sido atribuída a Neymar), a brasileira estrela da ginástica e campeã olímpica não só faz terapia há mais de dez anos (desde os 13) como se interessa tanto por saúde mental que resolveu se profissionalizar. No momento, ela está com a matrícula trancada por causa dos Jogos.
Biles e Rebeca competem de perto em Paris. Elas se enfrentam cinco vezes nas finais, a primeira delas nesta terça-feira (30/07), por equipe. E também nas categorias (individual geral, salto, trave e solo). "A Andrade é a que me dá mais medo", afirmou Biles em uma entrevista para a TV no ano passado. Mas isso não quer dizer que elas não se apoiem.
Sim, as duas, competidoras nos ginásios, pisam em cima do mito da rivalidade feminina. Durante o Mundial de Ginástica Artística, que aconteceu ano passado, as duas foram filmadas rindo na lateral do ginásio. A câmera flagrou um momento em que Biles faz uma coroa imaginária com as mãos e coloca na cabeça de Rebeca. Ao comentar o momento, a brasileira disse: "É sensacional. A gente torce muito uma pela outra. Em Tóquio, eu lembro o quanto ela, mesmo passando por situações difíceis, estava torcendo. E isso não é só entre mim e ela, é com todas as ginastas, porque a gente sabe como foi difícil chegar lá. Torço muito por ela. E vai ser assim sempre".
Biles tem apenas 27 anos e Rebeca Andrade, 25. Vocês, marmanjos que ficam torcendo para atleta caírem ou alimentando rivalidade feminina, podiam tentar aprender um pouco com elas. E os esportistas "muito machos" e negacionistas de saúde mental também.
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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo "02 Neurônio". Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.