Schiller e a música
24 de agosto de 2005Alegria, centelha divina,
filha do Eliseu!
Ébrios de fogo, ó Celestial,
adentramos teu santuário!
Com essas palavras da Ode à Alegria, aqui em tradução livre, inicia-se o famosíssimo coro final da 9ª sinfonia de Ludwig van Beethoven. Uma obra de história ambivalente: assim como Adolf Hitler a fazia executar em seus aniversários, foi com a Ode que Leonard Bernstein comemorou a queda do Muro de Berlim, em 10 de novembro de 1989:
Recebei um abraço, ó milhões,
este beijo vai para todo o mundo!
O poema de 1785 é talvez o mais famoso, porém apenas um dos inúmeros exemplos da profunda e intensa relação de Friedrich Schiller (1759–1805) com a música. Para o poeta nascido em Marbach, essa arte era um assunto de enorme seriedade, indo muito além da mera diversão ou de uma brincadeira com sons.
Arrebatamento, não cócegas
Em seu ensaio Sobre o patético, Schiller revela o que espera da música: que arrebate o ouvinte, que não lhe faça apenas "agradáveis cócegas". Por outro lado, esse arrebatamento deve obedecer a regras: "A música dos inovadores também parece apoiar-se apenas na sensualidade. Uma expressão de sensualidade chegando às raias do animalesco costuma revelar-se em todos os rostos, os olhos ébrios se embaçam, a boca aberta é desejo puro, um tremor voluptuoso toma os corpos. Afirmo que o gosto nobre e masculino exclui todas essas sensações da arte".
Tamanho engajamento explica a paixão de suas opiniões sobre determinadas obras e personagens da cena musical. O compositor e musicólogo Johann Friedrich Reichardt (1752–1814), Schiller desprezava, taxando-o de "gajo insuportavelmente intrometido e impertinente" e "inseto": "Realmente, deveríamos caçá-lo até a morte, senão ele não nos deixa em paz". Porém nem toda essa ojeriza pôde anular a admiração de Reichardt pelo poeta, ou impedi-lo de compor várias canções baseadas em textos schillerianos.
Certa vez, o representante do Sturm und Drang caracterizou uma apresentação do oratório A Criação, de Joseph Haydn, como "miscelânea sem caráter". Por outro lado, a ópera Ifigênia em Táuris, de Christoph Willibald Gluck, representou para Schiller um "prazer sem fim" e um paradigma do Classicismo musical. Em 1800, escreveria ao colega Johann Wolfgang Goethe: "Essa música é tão celestial que, mesmo no ensaio, entre as piadas e distrações dos cantores, ela me comove até as lágrimas".
Assassinato com acompanhamento musical
Embora jamais se haja arriscado no campo dos libretos para ópera, a concepção teatral de Schiller é freqüentemente operística. Em 1797, em outra carta a Goethe, confessa: "Sempre tive uma certa confiança na ópera, que a tragédia se libertaria dela numa forma mais nobre, como dos coros do antigo festejo báquico".
Por exemplo, a primeira cena de Guilherme Tell abunda em rubricas musicais sugestivas: ainda com a cortina fechada, a público ouve uma melodia folclórica suíça e o "badalar harmonioso de sinos de gado", que se prolonga então pela cena adentro.
Sobe o pano e, ainda antecedendo o texto dramático propriamente dito, um aprendiz de pescador "canta da canoa", um pastor responde da montanha com uma canção, até que um caçador alpino finaliza a introdução musical, entoando duas estrofes. Schiller especifica até mesmo que as canções subseqüentes devem ser variações sobre a melodia suíça ouvida no início.
Mais tarde, na cena central da peça, a terceira do quarto ato, Schiller "compõe" um momento de complexa ironia dramático-musical, digna de um Puccini. Durante o conflito com Gessler, um cortejo nupcial se aproxima, por trás do palco: a alegria despreocupada oferece um contraponto eficiente para a crescente tensão no primeiro plano. A entrada do cortejo coincide com a flechada fatal de Tell: o tirano sangra até a morte, e a música alegre continua até que um dos homens de Gessler diz:
Está louco este povo, que acompanha o assassinato com música? Fazei-os calar.
Lieder e ópera
Além dos já mencionados Beethoven e Reichardt, praticamente nenhum dos grandes compositores românticos deixou de recorrer às palavras, idéias ou tramas teatrais de Schiller, como fonte de inspiração musical. Cite-se aqui apenas os lieder de Franz Schubert, Robert Schumann e Felix Mendelssohn ou o 12º poema sinfônico de Franz Liszt, baseado na poesia Os ideais.
A representação emocional de destinos humanos, plena de episódios dramáticos, tornou Schiller um favorito dos libretistas e compositores italianos. Entre 1813 e 1876 nada menos do que 19 de suas obras subiram aos palcos da Itália, transformadas em ópera.
Talvez em parte devido à má qualidade das adaptações – superficiais e simplificadoras – a maioria dessas obras desapareceu completamente do repertório. Dentre as que sobreviveram temos a Maria Stuart de Gaetano Donizetti e o Guilherme Tell de Gioacchino Rossini. E, sobretudo, os quatro dramas de Giuseppe Verdi: Joana d'Arc, I masnadieri (baseada em Os bandoleiros), Luisa Miller (Cabala e amor) e Dom Carlos. Delas, apenas esta última preserva em seu libreto algo da qualidade e dimensão poético-teatral do original.
Fugindo com a música
Schiller e a música: uma relação tumultuada e apaixonada. Para terminar, um episódio interessante de sua biografia, com significado quase alegórico: em setembro de 1782, Schiller foi obrigado a fugir da guarnição militar de Stuttgart, onde atuava como médico, escapando à perseguição pelo duque Carlos Eugênio.
Não só as práticas literárias eram proibidas entre militares, como alguns meses antes o duque punira o poeta com prisão, por este haver se afastado sem sua permissão, a fim de assistir em Mannheim uma récita de Os bandoleiros. Significativamente, Schiller escolheu como companheiro de fuga ninguém outro do que Andreas Streicher: seu grande amigo e... músico.