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Sobre o aborto no Brasil

8 de agosto de 2018

O Brasil ignora as experiências da Europa, onde o número de abortos caiu com a despenalização. Agarra-se ao conservadorismo da América Latina, que mantém a região atrasada. A lei pune, quase sempre, as mais pobres.

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Protesto contra a lei de proibição do aborto no Rio
Protesto contra a lei de proibição do aborto no RioFoto: Agencia Brasil/F. Frazão

Conheço três brasileiras que fizeram aborto. Na verdade, elas deveriam ser presas por isso, já que, no Brasil, o aborto é proibido, salvo com as seguintes exceções: quando há risco de vida para a mulher, em casos de estupro e de anencefalia do feto.

Essas exceções não se aplicaram a nenhuma das três. Suas gestações foram assim chamadas "acidentes". Em todos os casos, os homens também eram favoráveis à interrupção da gravidez. Mas, naturalmente, eles não correm o risco de ser penalizados por isso.

A primeira das três mulheres tem pouco mais de 20 anos. Engravidou de um alemão mais velho que a ajudou a conseguir o medicamento Cytotec, cuja venda é proibida no Brasil. Na realidade, o Cytotec só deveria estar disponível em hospitais autorizados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Ainda assim, eles conseguiram encontrar com relativa facilidade o remédio, cujo uso é arriscado. Há grupos de Whatsapp nos quais é possível encomendá-lo. O medicamento é enviado pelo correio e é caro.

Antes disso, ela entrou num longo conflito consigo mesma. O fato de o parceiro não querer ter o filho a fortaleceu em sua decisão.

Minha segunda conhecida viajou a Londres para fazer o aborto. O homem do qual ela havia engravidado é inglês. Ele marcou uma hora numa clínica na qual a mulher, sob supervisão médica, tomou medicamentos que interromperam a gestação. Até hoje, ela lembra do doloroso processo, tanto física quanto psicologicamente. Ela diz: "Naquela época, eu era muito nova para ter filhos. O pai não teria me apoiado."

Minha terceira conhecida ficou grávida com quase 50 anos. Ela já tem dois filhos. Procurou uma clínica no bairro de Bonsucesso – a clínica opera ilegalmente, mas é bastante conhecida. Também existem clínicas parecidas na Barra da Tijuca, no Rio, e em outras cidades brasileiras. São mulheres abastadas que, aparentemente, fazem abortos com anuência das autoridades. O procedimento não é barato – dependendo da complexidade, o aborto custa 3  mil reais.

Por alguns dias, o Supremo Tribunal Federal realizou uma audiência pública para ouvir argumentos pró e contra a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. Não se trata, na realidade, de saber se alguém é pró ou contra o aborto, mas sim de descobrir como o Brasil lida com o fato de que, anualmente, entre 500 mil e 1,2 milhão de mulheres realizam abortos por ano. Isso acontece totalmente independente da vontade do STF, do Congresso, das igrejas e outros grupos conservadores.

A maioria das mulheres que fazem abortos ilegais no Brasil é de negras, pobres e que já têm filhos. A cada dois dias, uma delas morre por não ter acesso a uma clínica. Em vez disso, recorrem a métodos inseguros. Cerca de 250 mil mulheres são internadas anualmente devido às complicações decorrentes. Ou seja, mulheres pobres morrem, mulheres ricas pagam. Essa é a realidade. E ela mostra: a Lei Penal datada de 1940 é inútil. Ela não se pauta pelo bem-estar da população, já que não leva a uma diminuição dos abortos e ao salvamento de vidas, mas sim, custa vidas e onera enormemente o sistema de saúde.

Além disso, a lei praticamente nunca é aplicada. Se fosse, as prisões brasileiras estariam cheias de milhões de pecadoras do aborto, e clínicas como a de Bonsucesso seriam fechadas pelas autoridades.

Igualmente, o Brasil ignora as experiências da Europa, onde o número de abortos caiu com a despenalização. Em vez disso, agarra-se ao típico ultraconservadorismo da América Latina, que mantém a região presa no atraso social. Um provável motivo para esse engessamento: 90% dos políticos brasileiros são homens – um dos números mais altos do mundo. Parece que suas ações não são motivadas por racionalidade e sensatez, mas por ideologia, emoções e dinheiro.

Políticos conservadores proíbem o aborto argumentando que a vida ainda por nascer precisa ser protegida. Logo, a vida nascida é menos importante para eles. Afinal, o que eles fazem pela educação das crianças cujas vidas eles fingem proteger? Ou pela saúde delas? Eles congelam as despesas para a saúde e a educação. Evidentemente, eles não se preocupam com as crianças, mas sim com o exercício de poder e de controle sobre o corpo da mulher.

Para nenhuma das minhas conhecidas, a decisão de fazer um aborto foi fácil. No final das contas, elas tomaram uma decisão racional e dolorosa. Uma delas me disse: "A lei não teve nenhuma importância nas minhas reflexões".

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Philipp Lichterbeck queria abrir um novo capítulo em sua vida quando se mudou de Berlim para o Rio, em 2012. Desde então, ele colabora com reportagens sobre o Brasil e demais países da América Latina para os jornais Tagesspiegel (Berlim), Wochenzeitung (Zurique) e Wiener Zeitung. Siga-o no Twitter em @Lichterbeck_Rio.

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