"Sobre Viver" traz relatos de sobreviventes do Holocausto
18 de setembro de 2007A psicóloga brasileira Sofia Débora Levy entrevistou entre 1994 e 1996 dez sobreviventes do Holocausto. Judeus de várias nacionalidades, todos residentes no Rio de Janeiro, eles relatam a experiência da fuga do nazismo e o recomeço da vida no Brasil.
Oito das dez entrevistas realizadas por Levy foram reunidas no volume Sobre Viver – oito relatos antes, durante e depois do Holocausto por homens e mulheres acolhidos no Brasil, publicado pela editora Relume-Dumará.
Em entrevista, Levy fala da forma como conduziu as entrevistas que formam o livro de sua autoria, descreve o processo de integração dos sobreviventes após a chegada ao Brasil e ressalta a importância da história oral para a memória coletiva.
DW-WORLD: A premissa do projeto de pesquisa que conduziu à publicação do seu livro Sobre Viver foi rever criticamente o comentário difamante de que os judeus "teriam se deixado levar como gado em direção ao matadouro". Poderia falar um pouco sobre como os depoimentos que você colheu elucidam a perversão da máquina nazista e a postura das vítimas, que muitas vezes não conseguiam, à primeira vista, acreditar no que acontecia?
Sofia Levy: Minha intenção ao rever esse comentário é chamar a atenção para a maneira como a história é repassada às gerações que não vivenciaram aquele momento histórico. Dizer que os judeus se deixaram levar como gado é atribuir uma posição passiva a um povo que fora estigmatizado pela ideologia vigente no totalitarismo nazi-fascista, que proibia a sua existência.
As vítimas, traumatizadas pela categorização de "não-seres", "coisificadas" ideologicamente e ameaçadas de morte a cada segundo, foram tratadas como indignas de pertencer à raça ariana, ideal de humanidade do nacional-socialismo. O absurdo de tais idéias de exclusão social em massa despertava primeiramente a reação de descrédito de que tal dimensão pudesse se concretizar, retardando tentativas de reposicionamento.
Com a gradativa deterioração social e financeira, e as chances diminutas de obter ajuda em larga escala, restava às vítimas tentar sobreviver dia a dia à morte circundante, inclusive submetendo-se às piores situações para poder chegar a ver o dia seguinte. Assim, a visão dos vagões de gado transportando milhares de seres humanos retrata a intenção das autoridades, mas não a conivência dos passageiros, como dá a entender o comentário referenciado.
Sua tese de mestrado inclui dez entrevistas com sobreviventes do Holocausto, que emigraram para o Brasil. A história brasileira vive em grande parte do mito da cordialidade em relação ao imigrante. Esses entrevistados têm lembranças positivas da chegada ao Brasil ou falam da transição entre as culturas como um processo doloroso?
É unânime a referência ao Brasil como um país no qual os depoentes sentiram-se acolhidos. Todos relatam a boa impressão frente às belezas naturais e, sobretudo, a um país onde não havia guerra. A possibilidade de novamente pertencer a uma pátria e ter sua cidadania reconhecida e legitimada fez com que a integração à cultura brasileira fosse vivenciada com abertura e satisfação. A colaboração de entidades filantrópicas e da comunidade judaica que aqui já vivia também ajudou bastante.
Os depoimentos que formam o volume Sobre Viver foram baseados no que você chama de escuta sensível, com poucas interferências do entrevistador. Poderia comentar a opção por este tipo de diálogo com os entrevistados?
Entrevistar sobreviventes com idade avançada e acompanhá-los numa retrospectiva de suas vidas, durante e depois de terem passado pelo Holocausto, não é como entrevistar uma pessoa para colher uma informação específica. Minha intenção era compreender como essas pessoas conseguiam apreender o que se passava com elas e, tendo sobrevivido, em que bases psicológicas e filosóficas conseguiram se reerguer e não sucumbir à dor.
Como psicóloga clínica, trago comigo a referência da escuta respeitosa à verdade do outro. Aliada à ótica da estruturação de coleta de dados pela técnica de "história de vida", ramo da história oral, coube a mim ouvir os relatos com atenção, de modo a conseguir trazer à tona as vivências frente às quais poderíamos nos aproximar de pessoas e não de dados, fatos, números já coletados e formatados pela história formal.
Recorrer à crueldade do passado e contar traumas vividos é certamente um momento doloroso. Poderia falar sobre a reação dos entrevistados, ao serem confrontados com a própria lembrança?
À medida que o sobrevivente acessava dados dolorosos e deixava aflorar sua sensibilidade durante a entrevista, minha interferência maior fazia-se no apoio à sua possibilidade de repassar essas dores com a certeza de que estariam sendo compreendidas, e não julgadas, duvidadas, nem distorcidas.
Assim, procurei ater-me à visão de mundo (Weltanschauung) presente no relato de cada depoente, sem contrapor comparações com outras fontes, mas sim enfatizando o resgate de quem relembrava momentos em que nem podia falar, muito menos ter sua percepção legitimada por alguém.
Além disso, todos os entrevistados concordaram em registrar suas histórias de vida com a finalidade de contribuir com informações para que outros não sejam vítimas e nem algozes de atrocidades como as perpetradas durante a Segunda Guerra Mundial. Este objetivo deu força para que cada um conseguisse relatar e atravessar suas dores pessoais em prol de uma contribuição social maior, além de constituir um legado para seus descendentes.
A relevância da história oral ainda é pouco valorizada pela história formal, que confia mais no documento do que no depoimento e muitas vezes ignora este último. Qual é, na sua opinião, a importância do registro do testemunho pessoal para a constituição da memória coletiva?
Quando trabalhamos com a história oral e em particular com a história de vida, constituímos, com a aquiescência do depoente, um "documento pessoal", como no caso das entrevistas de Sobre Viver. Quando o depoente possuía algum documento da época, comprobatório dos dados relatados, anexamos ao seu relato. No entanto, como é comum às vítimas de grandes tragédias, na maioria das vezes os sobreviventes não portavam nenhuma prova de suas vidas durante os anos de Holocausto.
Mas o que é mais fascinante no testemunho pessoal é a aproximação da vítima para com aqueles que não estavam em condições similares. O relato traz dados em linguagem clara e acessível, mantendo a história viva, inteligível e próxima de quem as ouve ou lê. Um dos objetivos de Sobre Viver é promover essa aproximação entre depoente e leitor, mantendo a peculiaridade de cada depoente em seu modo de se expressar e descrever o seu cotidiano.
Hoje em dia, a narrativa em primeira pessoa ganha espaço tanto em textos acadêmicos quanto em romances. Os depoimentos têm despertado maior interesse por parte de pesquisadores, visando apreender o real vivido e não só o real conjeturado ou teorizado.
Em seus textos, você cita a reflexão acerca do Holocausto como uma forma de pensar, num contexto social ou até mesmo filosófico, sobre as relações humanas. Em que sentido esta reflexão pode ser inserida numa análise atual das sociedades contemporâneas?
Refletir sobre o Holocausto é refletir sobre a capacidade e responsabilidade humana de ser tão mais vil ou sublime conforme a posição ética e moral de cada indivíduo. Este é um exercício sempre necessário ao aprimoramento social. O horror inimaginável e desumano foi concretizado no período nazista e, infelizmente, ainda hoje assistimos ao longo do mundo inteiro a repetição de atrocidades, apesar de não organizadas sob a mesma égide nazista.
Em nossos dias, convivemos com novas formas de banalização do mal, que cresce em escala individual e coletiva – desde a violência doméstica até o fundamentalismo que mata o diferente em nome do seu sagrado religioso. O que vemos acontecer na violência atual é o despojamento de qualquer sentimento de culpa, vergonha ou responsabilidade acerca do mal intentado e praticado; esta foi a correção que os algozes fizeram de sua posição destrutiva na Segunda Guerra: não sucumbir, nem se suicidar se o plano não teve sucesso.
Basta negar a participação, manipular as informações ainda mais e inverter os motivos de suas ações através de justificativas racionalizadas, distantes da realidade perpetrada. Além disso, havemos de considerar as crises econômicas ao longo do mundo, que aumentam a intolerância e promovem a violência como parâmetro socialmente aceito. Isso por si só já nos remete às características totalitárias.
Não negar a diferença e sim fazer proveito dela como enriquecimento é certamente uma utopia nas sociedades multiculturais. As posturas frente à diversidade são, no entanto, bastante distintas na Europa e no chamado Novo Mundo. Você acredita que o Brasil pode, neste contexto, servir de exemplo a ser seguido?
Sim, se nós brasileiros conseguirmos manter a qualidade "macunaímica" da miscigenação resultando de felicidade e aceitação. Mas, infelizmente, a violência se alastra pelo Brasil, e a imagem do país ensolarado e hospitaleiro cede lugar, nas manchetes nacionais e internacionais, a um país temível, perigoso e do qual não se tem certeza de visitar e sair ileso.
Soma-se a isso a tendência colonialista de assimilarmos modelos culturais dos países desenvolvidos, inclusive suas formas de violência e de discriminação. A manutenção da imagem do país acolhedor, emocionante, integrador e rico em belezas naturais depende da prática vivida pelos seus cidadãos.
Espero que possamos resgatar essa característica já registrada historicamente no Brasil, mantendo um referencial de melhores possibilidades de convivência, revisitando esta identidade nacional como forma de combate à da intolerância, e como expressão da cultura brasileira.