Supremo "no limite" contra o extremismo de direita
10 de janeiro de 2023O início do ano em clima de normalidade democrática no Brasil durou pouco. Apenas uma semana após a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que transcorreu de forma pacífica e foi seguida pelo debate sobre prioridades da nova gestão, o extremismo de direita representado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro ressurgiu com força, invadindo e depredando as sedes dos Três Poderes, em Brasília.
Em reação ao ataque, foram adotadas medidas excepcionais no próprio domingo. No final da tarde, Lula anunciou uma intervenção federal na segurança pública do Distrito Federal. Algumas horas depois, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou o afastamento do governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, por 90 dias.
Moraes foi duro em sua decisão contra Ibaneis, tomada no âmbito do inquérito dos atos antidemocráticos a pedido da Advocacia-Geral da União e do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP). O ministro afirmou que o governador foi omisso e conivente, e intencionalmente não agiu para evitar as cenas de terror na Praça dos Três Poderes, que tinham o objetivo de "desestabilizar as instituições republicanas".
"A democracia brasileira não irá mais suportar a ignóbil política de apaziguamento, cujo fracasso foi amplamente demonstrado na tentativa de acordo do então primeiro-ministro inglês Neville Chamberlain com Adolf Hitler. Os agentes públicos (atuais e anteriores) que continuarem a se portar dolosamente dessa maneira, pactuando covardemente com a quebra da democracia e a instalação de um estado de exceção, serão responsabilizados, pois como ensinava Winston Churchill, 'um apaziguador é alguém que alimenta um crocodilo esperando ser o último a ser devorado'", escreveu Moraes.
O afastamento de Ibaneis, um aliado de Bolsonaro, reforçou a imagem de Moraes como face institucional mais visível do combate a radicais de extrema direita, papel que ele vem desempenhando desde 2019 – não sem questionamento – e que atingiu seu ápice na organização das eleições deste ano, como presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Pode um ministro do Supremo exercer tanto poder, a ponto de afastar, por decisão individual, um governador eleito pela população de uma unidade federativa? E ainda por cima com base em um inquérito de escopo amplo, aberto originalmente pela própria Corte?
Afastamento de governador
A resposta para a primeira questão é mais direta. Desde 2017, o Supremo admite o afastamento cautelar (em caráter de urgência) de governadores por decisão judicial, sem que seja necessáriá autorização prévia das assembleias legislativas estaduais.
Esse entendimento foi firmado em uma ação direta de inconstitucionalidade movida pelo partido Democratas – que se fundiu no ano passado ao PSL para criar o União Brasil. Os ministros concluíram que a regra da Constituição que exige autorização do Legislativo para afastar presidentes do cargo não se aplica aos governadores.
Mas, em geral, cabe ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) analisar casos envolvendo governadores, e não ao STF. Alguns já foram afastados dessa forma – no exemplo mais recente, de outubro passado, a ministra Laurita Vaz, do STJ, determinou o afastamento cautelar do governador de Alagoas, Paulo Dantas, investigado por desvio de recursos públicos, em decisão depois confirmada pelo plenário.
No caso de Ibaneis, ele foi incluído no inquérito dos atos antidemocráticos que tramita no Supremo, e por isso a competência para decidir foi assumida por Moraes, relator do inquérito.
Há dois requisitos legais para justificar o afastamento cautelar de um governador, explica Thomaz Pereira, professor de Direito Constitucional da FGV Direito Rio.
Um deles é o risco de o governador, mantido no cargo, continuar cometendo os delitos pelos quais é acusado. O outro é o risco de ele usar o cargo para atrapalhar a apuração, como intimidar testemunhas ou destruir provas.
"Na decisão de Moraes [contra Ibaneis], ele indica que seria pela possibilidade das duas coisas. Teria ocorrido omissão dolosa do governador, que continuaria com ele no cargo. E pelo fato de ele poder afetar negativamente a investigação", diz Pereira.
A possibilidade de que Ibaneis poderia atrapalhar a apuração é um argumento para afastá-lo mesmo após a intervenção federal na segurança pública do Distrito Federal, confirmada pelo Congresso nesta terça-feira, observa Pereira.
Inquérito onde "tudo cabe"
O debate sobre o inquérito a partir do qual a decisão contra Ibaneis foi tomada é mais complexo. Moraes tornou-se uma espécie de "xerife" contra extremistas de direita a partir de março de 2019, no início do governo Bolsonaro, quando o então presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, instaurou ele mesmo um inquérito para investigar notícias falsas e ameaças contra ministros da Corte, e designou Moraes como relator.
Esse inquérito tem duas particularidades que o distanciam do procedimento normal no direito brasileiro. Em regra, cabe ao Ministério Público instaurar um inquérito, e não ao Judiciário. Além disso, o relator costuma ser definido por sorteio.
Na época, Toffoli justificou a sua decisão com base em uma norma do regimento interno do Supremo que autoriza a abertura de inquéritos de ofício quando há infração à lei penal envolvendo a Corte, cuja interpretação abrangeu os seus ministros.
Moraes começou então a determinar operações de busca e apreensão e a receber provas e laudos policiais sobre bolsonaristas que promoviam e financiavam a distribuição de notícias falsas, colocando o ministro em posição privilegiada, já no início do governo Bolsonaro, para compreender e combater essas redes.
Houve muito debate no meio jurídico sobre esse inquérito, e ele foi questionado pela Procuradoria-Geral da República (PGR), até que o plenário do Supremo confirmou em 2020, por 10 votos a 1, a sua legalidade.
Também em 2020 foi aberto um segundo inquérito, a pedido da PGR, para investigar a organização e o financiamento de atos antidemocráticos, sob a relatoria de Moraes. No ano seguinte, o ministro encerrou esse inquérito, a pedido da PGR, mas abriu um novo, a partir dos indícios coletados pela Polícia Federal nas investigações.
Esse último inquérito vem sendo amplamente utilizado por Moraes para investigar atos antidemocráticos e tem no alvo pessoas com foro privilegiado no Supremo – como congressistas –, com foro privilegiado no STJ – como Ibaneis – e pessoas sem foro privilegiado.
O atual procurador-geral da República, Augusto Aras, foi acusado por muitos juristas de inação em relação a Bolsonaro, o que também aumentou a pressão por alternativas.
"Malabarismo" pela democracia
"Tudo o que acontece sobre questões antidemocráticas cai no bolão desse inquérito. Cabe quase tudo ali, e Moraes fica com um instrumento para poder agir", diz o professor Juliano Zaiden Benvindo, líder do Centro de Estudos Constitucionais Comparados da Universidade de Brasília (UnB) e fellow do Max Planck Institute for Comparative Public Law and International Law, na cidade alemã de Heidelberg.
Ele afirma que esse instrumento de investigação desperta "dilemas de constitucionalista" sobre garantias e regras processuais, mas pode ser justificado diante do extremismo bolsonarista que busca erodir os fundamentos da democracia liberal.
"Quando se lida com grupos que estão atentando contra a democracia, você acaba fazendo um pouco de malabarismo, dentro das regras constitucionais e processuais, para tentar preservar a democracia", diz o professor da UnB. "Historicamente, o direito constitucional mostra que as instituições tentam encontrar um mecanismo de proteção, às vezes no limite da possibilidade da legalidade."
A esse aspecto, soma-se uma particularidade brasileira. Especialista em direito internacional comparado, Benvindo diz que o Supremo é uma das cortes constitucionais "mais fortes do mundo", em termos do poder individual de cada ministro e das atribuições para atuar em relação a outros poderes.
"Tirar um governador é uma interferência nos poderes muito forte. É chocante, assusta, mas há vários precedentes, não só do STF, como no STJ também, e argumentos para isso. E a decisão de Moras é muito bem fundamentada", afirma.
Pereira, da FGV Direito Rio, tem avaliação semelhante: "Os fatos deste domingo deixaram evidente que de fato havia sim uma organização em curso tentando estimular atos como os que a gente viu, e que resultaram nos crimes que a gente viu serem cometidos. Os fatos comprovam a importância de continuar investigando essa organização criminosa."