Contrastes nos canaviais
3 de dezembro de 2006Antônio Rodegher está sentado em frente ao computador, numa sala térrea, nos fundos da Usina Açucareira Bom Retiro, em Capivari, a 140 km de São Paulo. Usa roupa simples, capacete na cabeça e botinas com bico de aço. Parece um operário, mas é o gerente industrial de uma das 17 usinas do grupo Cosan, a maior companhia de açúcar e álcool do Brasil e a segunda maior do mundo.
Enquanto responde aos e-mails mais urgentes, Rodegher telefona para a matriz em São Paulo e acompanha a cotação do açúcar nas bolsas de valores, exibida no canto da tela do PC. Apesar da agenda apertada – está fazendo a primeira avaliação de seus 150 funcionários –, encontra tempo para mostrar a fábrica.
A Bom Retiro é uma usina pequena. Na atual safra, está processando 1,1 milhão de toneladas de cana, para produzir 85 mil toneladas de açúcar e 35 milhões de litros de álcool. O grupo Cosan, que tem mais de 35 mil funcionários, transformou 37 milhões de toneladas de cana em 65 milhões de sacas de açúcar e 1,2 bilhão de litros de álcool na safra 2006/07.
Rodegher não tinha todos estes números guardados sob seu capacete, mas de cana-de-açúcar ele sabe tudo. Nasceu na lavoura e foi cortador até os 20 anos. "Há cana que, do plantio à primeira colheita, demora um ano e outra que leva um ano e meio. Depois do primeiro corte, todas são anuais. Após quatro ou cinco safras, o terreno é arado e o ciclo recomeça", explica.
A "vinhaça", subproduto da destilação do álcool, é usada como fertilizante. A "torta", subproduto da clarificação do caldo de cana, vira adubo orgânico. "E há um complemento com adubação química na plantação", diz Rodegher. O resultado é o que se vê ao redor da fábrica: um mar verde de folhas de cana a se perder no horizonte. Monocultura pura.
Auto-suficiência
No pátio da fábrica, o ronco dos caminhões que chegam da lavoura mistura-se ao das garras mecânicas e esteiras de descarga e lavagem da cana, bem como ao ruído das moendas e outras máquinas do processo de produção. Vêem-se poucos operários, quase tudo é automatizado.
Construída em 1918, a Bom Retiro acompanhou a modernização no campo não só na colheita, onde uma máquina chega a fazer o trabalho de 400 cortadores. Gera também toda a energia de que precisa a partir do bagaço.
Além disso, é auto-suficiente no abastecimento de água. "Do caldo de cana, 85% evapora e é condensado, virando água. Dos 15% de sólidos restantes é que vêm o açúcar e o álcool – este último sai do mel de açúcar", resume Rodegher.
Na destilaria de etanol, uma sopa marrom borbulha em enormes tanques de fermentação. De longe, a estrutura da destilaria se ergue do meio do canavial como um foguete em posição de lançamento. Dentro dela, é proibido fotografar: perigo de explosão.
Perguntas incômodas
Rodegher não se irrita com perguntas incômodas para os usineiros. "A Cosan atua com responsabilidade social e ambiental. Damos alojamento com almoço e janta. Os cortadores querem ser pagos por produtividade e têm plano de saúde por conta da empresa. Adotamos todas as medidas de segurança exigidas por lei", garante.
Sentado na entrada de um alojamento próximo à usina, Manuel Antônio conta que estava desempregado, quando deixou a mulher e o filho de cinco anos em Feira de Santana, Bahia, para cumprir sua primeira temporada como cortador em Capivari. No momento, mantém apenas contato telefônico com a família.
Ele é um dos 115 baianos que deixaram suas famílias a mais de 2300 km de distância e permanecem durante seis meses no canavial, sem voltar para casa. Sobre a alimentação e acomodação não há reclamações. "O salário depende do produzido no turno. É melhor do que não ter nada, não ter emprego", diz Manuel Antônio. "Tenho pena dos baianos", afirma Jair Barcherotto, há 30 anos na usina. "Eles sentem muita saudade da família."
Déficit ambiental
Laerte Forti Júnior, 68 anos, descendente de imigrantes italianos, passou de dono da usina a empregado (gerente executivo), desde que a Cosan comprou a Bom Retiro, no início deste ano. Com a experiência de 50 safras, ele diz que "o trabalho na usina de açúcar vicia. A Cosan tem extremo cuidado com as condições de trabalho".
Ambientalistas criticam a monocultura da cana, devido a efeitos negativos sobre o meio ambiente. "O balanço ambiental do etanol ainda tem de melhorar muito", admite Forti. "Há algumas coisas que precisam ser corrigidas, como os vazamentos de vinhoto. Mas este problema ocorre mais em regiões sem tradição canavieira, não em Capivari", acrescenta.
Forti prevê uma forte expansão dos canaviais para outras regiões do país – hoje a região Sudeste é reponsável por 65% da produção nacional. "Desde o início do Proácool, o setor nunca esteve tão bem como hoje. O crescimento é irreversível", prevê.
Novo ciclo da cana
Esta euforia é confirmada pelas projeções da Unica (União da Agroindústria Canavieira de São Paulo), que prevêem uma demanda adicional de 10 bilhões de litros de álcool e 7 milhões de toneladas de açúcar até 2010.
Isso implicaria produzir anualmente 180 milhões de toneladas de cana adicionais numa área a mais de 2,5 milhões de hectares de cana-de-açúcar (hoje são 5,8 milhões de hectares no país). Esta expansão geraria 360 mil novos empregos diretos e 900 mil indiretos no campo, além de um faturamento adicional de US$ 4,5 bilhões/ano para o setor.
Segundo o presidente da Unica, Eduardo Pereira de Carvalho, até 2012, o setor sucroalcooleiro deve receber investimentos da ordem de US$ 14,6 bilhões para construção, modernização e ampliação de novas unidades produtoras de açúcar e álcool.
"A imagem do passado desapareceu. Houve uma evolução impressionante na cultura da cana, e hoje o Brasil já é o líder mundial em tecnologia, além de ser o maior produtor e exportador de açúcar e álcool do planeta", disse Carvalho recentemente à revista Época Negócios.
Moderno e arcaico
Quem permanece apenas algumas horas na Usina Bom Retiro, sem mergulhar a fundo no seu dia-a-dia de trabalho no canavial, sai de lá com a impressão de que a cultura da cana-de-açúcar, de fato, se despediu da imagem que a associou durante séculos a engenhos antigos, transporte em lombo de burro, coronéis e escravos.
Mas não são raros os casos em que usinas moderníssimas controladas por computadores, com laboratórios que fazem seleção genética da cana e usineiros que negociam ações na bolsa de valores ou no mercado futuro, contrastam com condições arcaicas de trabalho e alojamentos nos canaviais.
No ano passado, 12 cortadores de cana morreram no Estado de São Paulo – supostamente por cansaço. No começo de novembro deste ano, 208 trabalhadores de uma usina da Cosan, em Charqueada, interior de São Paulo, entraram em greve. Disseram que estavam "esgotados e que o ganho e a qualidade de vida não correspondem aos anseios de uma vida digna e justa". Não foi a primeira reclamação contra empresas do grupo Cosan.
Trabalho escravo
Em 2006, o Ministério Público do Trabalho (MPT) 15ª Região e o Ministério Público do Estado (MTE) de São Paulo fiscalizaram 140 empresas no interior paulista e registraram mais de 600 autos de infração em lavouras de cana-de-açúcar. "Todas as empresas fiscalizadas apresentaram irregularidades", informaram as autoridades.
As infrações mais freqüentes foram a falta de equipamentos de proteção individual, excesso de jornada, não fornecimento de água fresca e potável, falta de sanitários e abrigo para refeições, ausência de exame médico admissional; ausência de pausa para refeições e descanso intrajornada; transporte irregular; e alojamentos precários.
"As usinas sonegam, com muita habilidade, as informações sobre práticas nefastas de exploração de mão-de-obra. As ações de fiscalização estão tendo relativo sucesso na melhoria das condições dos trabalhadores, que no entanto ainda são bastante precárias", informou o MTE à DW-WORLD.
O gerente industrial Antônio Rodegher garante que a Usina Bom Retiro não tem esses problemas. "Aqui não tem trabalho escravo".