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Entrevista

1 de maio de 2011

O teólogo alemão Hans Küng critica a beatificação de João Paulo 2°, afirmando que isso implica, na verdade, a beatificação de uma política eclesiástica reacionária.

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Papa João Paulo 2°, em 2002
Papa João Paulo 2°, em 2002Foto: AP

Milhares de pessoas presenciaram no Vaticano neste domingo (01/05) a missa celebrada pelo papa Bento 16 para a beatificação de seu antecessor, João Paulo 2º, falecido em 2005. Essa foi a penúltima etapa no reconhecimento do papa polonês como santo pela Igreja Católica.

Teólogo e filósofo Hans Küng
Teólogo e filósofo Hans KüngFoto: picture-alliance/ dpa

Em entrevista à emissora Deutschlandfunk, o teólogo alemão Hans Küng criticou o papa João Paulo 2°, classificando-o de intolerante, reacionário e sem disposição para o diálogo. O teólogo, que foi proibido de lecionar teologia católica em 1979 por João Paulo 2°, afirma na entrevista "não entender como se pode beatificar tal homem, como se pode fazer dele um exemplo para a Igreja".

Küng também criticou a violação do direito canônico devido ao desrespeito dos prazos de beatificação por parte da Santa Sé.

Jürgen Zurheide: Em primeiro lugar, o senhor mesmo está bastante cético e criticou a rápida beatificação de João Paulo 2°. Quais são os seus principais motivos?

Hans Küng: Não nego que ele tenha sido um homem de caráter, um pioneiro da lutas e dos direitos humanos e que tinha muitos lados positivos. Mas, por outro lado, pairam tantas sombras sobre essa pessoa e seu pontificado, que eu não concordo de maneira alguma com sua beatificação.

Ele praticava uma política interna autoritária. Com essa beatificação, está sendo beatificada uma determinada política eclesiástica reacionária restaurativa. Aconteceram também, nesse contexto, diversas violações do direito canônico. Todos os prazos previstos foram colocados fora de vigor, tudo sempre através do privilégio papal, o que é um sinal de que ainda temos um absolutismo medieval. Houve uma múltipla traição ao Concílio.

Se comparar com o grande slogan do aggiornamento – como se chamava antigamente [a modernização da Igreja como objetivo do Concílio Vaticano 2°] –, nós presenciamos a volta das grandes encíclicas morais, de um catecismo tradicionalista. [...] Em vez de diálogo, se aposta novamente no controle da liberdade de expressão e consciência.

Então, se eu ainda acho que a nova evangelização falhou completamente e, hoje, 80% dos católicos alemães exigem reformas em sua Igreja, e se levo em conta o nefasto envolvimento com o pedófilo Maciel Degollado, então devo dizer que não posso entender como se pode beatificar tal homem, como se pode fazer dele um exemplo para a Igreja.

Voltaremos a falar sobre a situação da própria Igreja, mas eu também quero lhe fazer uma pergunta pessoal: o fato de João Paulo 2° ter cassado sua licença para lecionar teologia católica em 1979 exerce algum papel em seu julgamento sobre ele? Existe uma amargura de sua parte?

Eu não estou amargurado, mas eu vejo isso naturalmente como o começo de uma onda inquisitória, que também atingiu outros teólogos, freiras e bispos. O meu caso foi apenas o primeiro. Na ocasião, eu não pude defender minha posição nem antes nem durante tampouco depois do processo.

Ou seja, isso é um sinal de que o papa foi intolerante durante todo o seu pontificado, sem disposição para o diálogo dentro da Igreja. Ele queria ter ao seu redor yes men, pessoas que obedecem a tudo incondicionalmente. Tudo isso fez com que agora estejamos numa verdadeira crise.

FLASH-GALERIE Vorbereitungen zur Heiligsprechung von Papst Johannes Paul II
Cartaz gigante de João Paulo 2° foi colocado no VaticanoFoto: picture alliance/dpa

O senhor já mencionou uma série de questões – de acordo com sua análise, a Igreja Católica se encontra em uma situação crítica. O senhor levantou a pergunta recentemente em um livro: A Igreja ainda pode ser salva? Alguns pontos já foram mencionados. O que acontece, em princípio, de errado?

Em princípio é errado que a Igreja Católica, a grande comunidade religiosa – da qual eu sempre fui membro e sempre o serei – sofra sob aquilo que chamamos de sistema romano. Esse sistema romano, um sistema de governança, foi criado na Idade Média, no século 11. Desde então, vivenciamos um Absolutismo papal, nós temos – pense em Canossa – os clérigos em contraposição aos leigos, temos também a lei do celibato, isso tudo é do século 11.

A Reforma, no entanto, não fez efeito, nem o Iluminismo. O Concílio Vaticano 2° tentou empreender uma reforma, mas não conseguiu. Temos agora mais uma vez os mesmos problemas, não há reforma do papado, da Cúria Romana, da lei do celibato, da atitude em relação às mulheres, à sexualidade, à misoginia. Isso tudo faz parte de um conjunto de coisas, foi isso que expliquei no livro.

O senhor está entre os que conhecem bem, há longo tempo e pessoalmente, o papa Bento 16. Até 2005, os senhores ainda empreendiam longas discussões. O senhor deve ter lhe enviado seu livro, já recebeu alguma resposta?

Eu enviei um exemplar. Acho que temos um diálogo muito aberto, e apesar de tudo bastante amigável. Servimos à mesma comunidade religiosa, mas é claro que de forma completamente diferente. Eu não espero que ele aprove o que eu escrevi agora, mas ele deve reconhecer que tenho boas intenções, intenções construtivas para a Igreja.

Ele me confirmou o recebimento e me disse claramente através de seu secretário particular que o Santo Padre deixa cumprimentos cordiais. De qualquer forma, esse é um sinal de que se podem ter diferentes opiniões na mesma Igreja, sem ser simplesmente inimigo um do outro.

O que deve acontecer para que essa Igreja volte a seguir o caminho do Concílio Vaticano 2°, que o senhor mencionou diversas vezes?

Eu propus no meu livro uma série de terapias ecumênicas, a Igreja teria de se concentrar novamente em suas funções básicas e assumir sua responsabilidade social. Mas caberia ao papa fazer um esforço maior de comunhão com a Igreja – quando 80% dos católicos alemães dizem hoje que desejam reformas, ele não pode simplesmente dizer que isso não lhe diz respeito.

A Cúria Romana precisa ser reformada com a maior urgência, o nepotismo deve ser substituído por pessoal competente. Precisamos, principalmente, também de uma Glasnost ou Perestroica para as finanças da Igreja. E a Inquisição deve ser finalmente abolida e as formas de repressão têm de ser eliminadas. Dessa forma, o direito canônico não deve ser só melhorado, como tem sido feito até agora, mas completamente reorganizado, ou seja, o casamento deve ser permitido a padres e bispos e os postos da Igreja devem ser abertos a mulheres.

E, sobretudo – isto é uma reclamação de muitos católicos – o clero e os leigos devem participar da escolha dos bispos, como era antigamente. E, quanto ao ecumenismo, já está mais do que na hora que seja permitida a comunhão entre católicos e protestantes, como se pode ler em muitos pareceres do movimento ecumênico. Também seria possível esperar que o papa trouxesse tais presentes quando viesse à Alemanha, e não somente palavras bonitas, aplaudidas por todos, especialmente pelos políticos.

Mas o senhor ainda tem alguma esperança de que isso aconteça?

Nós não podemos impor limites ao espírito de Deus.

Entrevista: Jürgen Zurheide (ca)
Revisão: Roselaine Wandscheer