Uso medicinal da maconha no Brasil esbarra na legislação
21 de fevereiro de 2014Marco S.* foi diagnosticado com a doença de Crohn em 2010. Com 26 anos, ficou surpreso quando soube que a grave inflamação no intestino também poderia ser tratada com maconha. "Hoje, ela me ajuda a viver. Os dois medicamentos convencionais que eu tomo não são suficientes. A erva alivia as fortes dores que eu sinto", conta.
Para fazer o uso medicinal da maconha, que já é regulamentado em países como Estados Unidos, Canadá, Holanda e Israel, ele tem que lidar com a ilegalidade. Contrariando as leis brasileiras, ele faz o cultivo da planta em casa.
Marco é um dos cerca de 20 mil brasileiros que apoiaram uma petição que pede ao Senado a regulamentação do uso medicinal, industrial e recreativo da maconha no país. No Facebook, ele e outras centenas de pacientes divulgam suas experiências na página "Eu uso maconha medicinal".
Maria F.*, de 65 anos, é uma das organizadoras da página. Ela utilizou maconha em 2007 para aliviar os sintomas da quimioterapia, durante o tratamento contra um câncer de intestino. "Os médicos não podem recomendar, mas todos com quem conversei foram favoráveis. Se não fosse a maconha, não sei se conseguiria sobreviver. Imagine um paciente com câncer jogado numa cama com dores terríveis, vômito, sem dormir e comer direito. A maconha reduziu meus enjoos e dores, aumentou meu apetite e melhorou meu humor", relata.
A artista plástica usava em média um grama de maconha por dia e fumava em "doses homeopáticas". Dois anos depois, foi diagnosticada com fibromialgia – síndrome que provoca fortes dores musculares – e passou a utilizar antidepressivos.
"Com o tratamento convencional, eu ficava realmente drogada. Com a supervisão do meu médico, comecei a reduzir os medicamentos ao verificar que a maconha estava me ajudando a lidar com as dores. Hoje, só tomo relaxante muscular esporadicamente. Mas é claro que há casos em que o tratamento convencional jamais pode ser abandonado", pondera.
O uso da maconha é proibido no Brasil. De acordo com a Lei de Drogas de 2006, quem porta uma substância entorpecente ou faz o cultivo dela para uso próprio recebe sanções de cunho socioeducativo. Para traficantes, a pena pode variar de cinco a 15 anos de prisão. Especialistas argumentam que, como a maconha faz mal para os pulmões, acarreta problemas de memória e, em alguns casos, leva à dependência, não deve ser legalizada.
Evidências científicas
Até fevereiro deste ano, 38 estudos randomizados controlados – que testam a eficácia de um tratamento em um grupo de pacientes – foram realizados no mundo para analisar o efeito medicinal da maconha.
Segundo Gregory Carter, diretor médico do Instituto de Realibilitação Saint Luke, nos Estados Unidos, 71% deles demonstraram que a erva é eficaz para combater os mais variados tipos de dor – desde as provocadas por câncer, esclerose múltipla e artrite às resultantes de traumas e cirurgias.
"O uso medicinal da maconha vem desde os tempos antigos e continua a ser recomendado por dezenas de milhares de médicos em diversos países", explica Carter. De acordo com o professor da Universidade de Washington, qualquer doença que cause inflamações, espasmos, distúrbios do sono, disfunção intestinal e perda de apetite pode ser tratada com a cannabis medicinal.
"Pela minha experiência, pacientes com doenças neurodegenerativas, esclerose múltipla e até doença de Parkinson também apresentam uma boa resposta ao tratamento com canabinoides", avalia.
O neurobiólogo Renato Malcher, professor da Universidade de Brasília (UnB), explica que a maconha atua na regulação de funções neurológicas e fisiológicas importantes do corpo humano. No caso de dores neuropáticas, originárias de defeitos na sinalização nervosa, poucos analgésicos funcionam, enquanto a maconha apresenta os resultados mais satisfatórios.
"Ela também atua na hiperativação dos neurônios, então é útil para evitar as convulsões da epilepsia, por exemplo", afirma Malcher. "O sistema nervoso sinaliza para o organismo a sensação de náusea, e a maconha reduz esse mal-estar. Além disso, ela tem um efeito geral sobre o sistema imunológico."
Tratamento contra o câncer
A ação da maconha atua também no combate à proliferação do câncer. "Estudos científicos internacionais mostram que os componentes da maconha são talvez uma das únicas substâncias capazes de impedir metástases", diz Malcher. "Existem casos de regressão de câncer de pele, mama e próstata com o uso da maconha", completa o especialista.
Ratos que receberam doses de tetrahidrocanabinol (THC), a principal substância psicoativa da maconha, num período de dois anos, apresentaram uma diminuição da incidência de câncer colorretal e de fígado, de acordo com testes feitos pelo Instituto Nacional do Câncer dos Estados Unidos.
Malcher destaca que a maconha também tem efeitos psicológicos importantes, porque potencializa a apreciação lúdica e reduz problemas fisiológicos causados pela depressão e pelo estresse.
"Faz parte da propriedade terapêutica da planta. É raro tratar sintomas fisiológicos e ainda gerar paz psicológica. Os efeitos sobre o estado de humor são valioso", afirma.
No mundo, componentes da maconha medicinal podem estar presentes em comprimidos e sprays, como o Sativex, utilizado no tratamento da esclerose múltipla. A maneira mais eficiente de tratamento com a maconha é por meio da inalação. "O efeito é rápido com a dose mínima necessária", explica o neurocientista. Os vaporizadores elevam a temperatura da erva sem causar combustão, assim o paciente não inala fumaça.
O uso medicinal da maconha também tem contraindicações, sobretudo para gestantes e lactantes. Plantas com excesso de THC não são recomendadas para quem tem ansiedade e depressão. O uso excessivo da droga também pode reduzir a produtividade. Para adolescentes, ainda não é claro o impacto do uso recreativo intenso.
"Para o uso medicinal, é preciso levar em conta a relação custo-benefício. A erva tem se mostrado eficiente no tratamento de crianças com epilepsia nos Estados Unidos, por exemplo", relata Malcher.
Regulamentação
O uso medicinal da maconha é regulamentado em 20 estados norte-americanos e no distrito de Columbia. No Colorado e em Washington, o uso recreativo da erva já foi legalizado. No Brasil, o tema esbarra na proibição legal. No Canadá, o primeiro país do mundo a permitir o uso de maconha para fins medicinais, a única forma de acesso é por meio de produtores licenciados pelo governo. Em Israel, o pedido deve ser feito ao Ministério da Saúde pelo médico especializado na doença sofrida pelo paciente.
Na Holanda, a droga pode ser indicada até por um farmacêutico. A oferta e a produção da erva é de responsabilidade do Escritório de Maconha Medicinal, que é ligado ao Ministério da Saúde, Bem-Estar Social e Esporte do governo holandês.
O psicofarmacologista Elisaldo Carlini, professor da Unifesp, tenta desde 2010 criar a Agência Brasileira da Cannabis Medicinal. O órgão seria responsável por regular e controlar o cultivo medicinal da maconha (Cannabis sativa) e esclarecer à população sobre os benefícios e riscos do tratamento.
"Está tudo pronto, o que falta é vencer a resistência de setores da medicina, que ainda têm uma visão retrógrada em relação à maconha", diz Carlini, que já foi membro do comitê de peritos da Organização Mundial da Saúde sobre álcool e drogas. "A bancada evangélica no Congresso, por exemplo, é absolutamente contrária, mas começa a haver um movimento por parte da população e de alguns médicos que querem que o governo mude essa opinião."
O Conselho Federal de Medicina, que já se posicionou duramente contra o uso terapêutico da maconha, passa a ter um novo olhar sobre a questão. A entidade argumenta que pode aprovar o tratamento caso estudos científicos rigorosos produzidos por institutos de excelência no Brasil comprovem sua eficácia.
"De acordo com as nossas resoluções e com a legislação brasileira, levaria ao menos cinco anos para que as pesquisas sejam realizadas. É uma discussão ainda incipiente. Não vamos criar obstáculos para a ciência. Se tiver alguma vantagem para o uso medicinal da maconha, vamos dizer que sim", disse à DW o vice-presidente do órgão, Emmanuel Fortes.
"Somos clandestinos"
Para extrair os efeitos medicinais, a planta precisaria ser produzida em espaços adequados com controle de qualidade de laboratório. "O mercado paralelo valoriza a maconha com excesso de THC, o que pode causar muita ansiedade. Em pessoas que têm tendência familiar à psicose ou as que sofrem de ansiedade, esse uso pode levar a surtos", explica Malcher. "No ambiente regulamentado, esse problema é resolvido."
Maria se incomoda com o fato de lidar com a ilegalidade. "Eu tenho que sair de casa e comprar maconha na biqueira. Sou obrigada a viver na clandestinidade. Ninguém quer ser traficante e também não queremos ser tratados como criminosos", afirma.
O designer Gilberto S.*, de 40 anos, gostaria de vaporizar a maconha medicinal ou usar o óleo com os componentes da planta para tratar a esclerose múltipla que descobriu em 1999. "Infelizmente não é possível. Eu tenho que fumar a maconha. Eu passei a ser um criminoso pelas leis brasileiras", lamenta.
O psicofarmacologista Elisaldo Carlini, da Unifesp, argumenta que a discussão acerca do tema tem de deixar de ser emocional. "Existe uma diferença entre a legalização e a aprovação do uso terapêutico. Não há justificativa para proibir a maconha medicinal do ponto de vista médico. Dados científicos destroem esses fatos", explica.
Um levantamento feito pela ONG norte-americana ProCon com base em informações do Food and Drug Administration (FDA), autoridade que regula alimentos e medicamentos nos Estados Unidos, aponta que as 17 drogas psicoativas autorizadas pelo órgão foram a principal causa suspeita de morte de 10 mil pacientes no país, enquanto que para componentes da maconha não houve nenhum registro. Como causa secundária, o uso de canabinoides foi o responsável pela morte de 279 pessoas.
"É preciso haver um choque de ética em quem tende a valorizar o aspecto patológico do uso e cria um alarmismo que pisa por cima do sofrimento dos pacientes e do respeito que os pesquisadores da área merecem", avalia Malcher. "Isso é resultado de uma apreciação política e não técnica do uso medicinal da droga. Elas plantas podem ser usadas sem nenhum preconceito."
Em resposta à petição online protolocada no Congresso Nacional, o senador Cristovam Buarque (PDT-DF) foi indicado para estudar a questão e avaliar a possibilidade de transformar a proposta de liberação da maconha para uso medicinal e recreativo em projeto de lei.
* Nomes alterados pela redação.