"Se a faculdade vai acabar com a vida do seu filho, não manda ele para a faculdade", disse o pastor André Valadão em um de seus eventos.
Parece meio contraintuitivo com os conselhos que deveriam ser proferidos, mas ele tem uma justificativa: "Não manda, que vá vender picolé na garagem. 'Ah, mas não criei meu filho para isso'. Criou para que, então? Para ele ir para o inferno? Criou sua filha para que? Para ser uma vagabunda ou uma mulher santa, digna, de família e de Deus? Daí ela tem um diploma, mas é rodada e doida."
O Varão Valadão continua: "'Ah, mas tenho um sonho de ter doutor em minha família'. Daí seu filho tem mestrado, doutorado, você vai falar de Jesus e ele diz 'Não fala de Deus para mim não'. Tenho uma mensagem para vocês: não parem de lutar pelos seus filhos."
Assim que assisti o vídeo, senti que precisava falar sobre. Não irei politizar excessivamente, mas não posso deixar de pontuar que a fala dele está bem coesa com a de alguns governantes da extrema direita, sobretudo no sentido de adjetivar pejorativamente as universidades públicas.
O Valadão é uma figura bem única e especial, para dizer o mínimo, se é que me entendem. Em muitos de seus vídeos, é possível dar boas risadas, ainda que não tenha sido sua intenção proporcionar esta sensação, mas em muitos outros, como este que motivou a coluna, ele faz um total desserviço. É importante que pessoas com o poder de alcance que ele tem, entendam sua responsabilidade para com suas falas e posicionamentos. Ele passa longe disso.
Meu objetivo aqui será esclarecer alguns pontos que ele cita em sua fala e que acredito que mereçam ser iluminados com informações.
Desrespeito às universidades
É impressionante como as universidades públicas incomodam o Varão e boa parte da corja política que o segue. Confesso que fico na dúvida sobre o quanto realmente acreditam que são instituições inúteis, ou se é justamente a produção intelectual que os incomoda tanto.
Se eu disser que nas universidades não há droga ou que 100% do corpo discente é comprometido, estarei mentindo. Há drogas, claro, e há estudantes que não são focados com a formação. É fato.
Mas pegar casos fora da curva para tentar manchar não apenas toda uma classe, mas também toda uma instituição é de uma maldade indescritível. Para além disso, sejamos honestos, já está bem brega e cansativa a narrativa de que há apenas vagabundos e comunistas nas universidades. Poxa, já deu.
As instituições brasileiras possuem estudantes incrivelmente comprometidos com a própria formação e altamente capacitados. Não coincidentemente, muitas delas configuram entre as melhores do mundo, e muitos de nossos docentes são referências mundiais nas respectivas áreas. Por que não falar sobre isso também?
Acessar o ensino superior pode ajudar na ascensão social
Outro ponto que me incomodou muito foi "Que vá vender picolé na garagem". Não há nada de errado ou de não virtuoso em vender picolé. Meu ponto não é esse. Para muitos brasileiros é, inclusive, a única fonte de renda e o que sustenta a família.
Mas é de tamanha irresponsabilidade ele usar seu poder de influência e alcance para deslegitimar uma ação que para boa parte do povo brasileiro ainda é a única possibilidade de algum tipo de ascensão social, o ingresso no ensino superior.
Já vi essa ascensão, via educação, ocorrendo inúmeras vezes, e é lindo. Me lembro de uma jovem preta aprovada em medicina na USP, e no dia da matrícula, a mãe foi com ela e vestida com o uniforme de caixa de supermercado. A filha, num único plantão, poderá ganhar mais que o mês todo da mãe. Os filhos da filha, já irão nascer em uma outra realidade, com mais conforto e possibilidade.
O Varão, por outro lado, vive numa grande bolha de privilégio e é um homem rico. Seus filhos já têm a vida garantida, assim como boa parte dos que vierem após. Uma parte expressiva de seu público, já não conta com o mesmo privilégio. Muitos, influenciados por ele, já não mais apoiarão seus filhos em relação aos estudos, e assim, consequentemente, terão suas possibilidades de ascensão limitadas.
Fico curioso se ele seguirá a mesma premissa com os próprios filhos. Será mesmo que não irão para a universidade?
É mentira que pessoas graduadas não acreditam na religião
Ao final de sua fala, afirma por A + B que pessoas que passam pelo ensino superior não acreditam em Deus ou em Jesus. É mentira.
Tenho uma colega que trilhou uma brilhante trajetória acadêmica, tendo feito doutorado sanduíche na melhor universidade do mundo, e hoje sendo professora doutora numa das melhores do Brasil, e que em nenhum momento teve sua fé diminuída. Segue, até hoje, muito fiel à sua religião e com uma relação muito bonita com a Igreja.
Na realidade, existem até grupos religiosos de estudantes dentro das próprias instituições.
Não há qualquer tipo de correlação entre perda de fé e escolarização. O que ocorre é que, de fato, quanto mais o indivíduo se capacita e agrega conhecimento, mais crítico ele fica e, naturalmente, menos suscetível a cair em discursos simplórios como o do Varão Valadão.
Me pergunto o que há nas universidades que incomodam tanto ele. Minha tese é que teme perder seu público e ter suas falas questionadas. Ele, assim como outros, ganha força numa população que não tem muito senso crítico. Essa força se traduz em poder, visibilidade, influência política e, não coincidentemente, também em muito dinheiro.
Para que tudo isso seja possível, as pessoas precisam acreditar, sem grandes questionamentos, em tudo o que ele diz, e usa a fé alinhada com a religião para manipular as pessoas a favor de suas próprias agendas e interesses políticos, ou seja: o conhecimento para o povo é o maior antídoto contra sua própria ascensão e isso ele não irá permitir.
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Vozes da Educação é uma coluna semanal escrita por jovens do Salvaguarda, programa social de voluntários que auxiliam alunos da rede pública do Brasil a entrar na universidade. Revezam-se na autoria dos textos o fundador do programa, Vinícius De Andrade, e alunos auxiliados pelo Salvaguarda em todos os estados da federação. Siga o perfil do Salvaguarda no Instagram em @salvaguarda1
Este texto foi escrito por Vinícius De Andrade e reflete a opinião do autor, não necessariamente a da DW.