Vila Autódromo é símbolo da luta contra remoções da Rio 2016
13 de julho de 2016Maria da Penha recebeu abrigo numa nave lateral da igreja católica. Segundo ela, a vida lá é boa, mas para cozinhar é necessário ir até o vizinho, pois não há cozinha. Ela então aponta para o seu quintal, ou para o que sobrou dele. "Fica ali atrás", diz.
Ela caminha até o terreno vazio onde antes ficava a casa em que viveu com a família por 23 anos. Um pé seco de tomate é a prova de que ali havia mesmo uma horta. Como se também ele não quisesse se dar por vencido, ainda se vê um pequeno tomate dependurado.
No dia 8 de março, uma escavadeira demoliu a casa de Maria da Penha sem aviso prévio. Ela havia se recusado a receber uma indenização.
Pois, para esta moradora de 51 anos, uma coisa é certa: ninguém a tira da Vila Autódromo, uma comunidade no oeste do Rio de Janeiro, ao lado do Parque Olímpico. Mesmo que tudo ali esteja cheio de entulho e poeira e muitas casas sejam somente ruínas. E mesmo que ela tenha sido intimidada e até mesmo agredida – em 2015, policiais quebraram o nariz dela durante protestos.
Jogos acabaram com a paz
A Vila Autódromo sempre foi uma área residencial peculiar. Por volta de 3 mil pessoas moravam no assentamento, que foi erguido ilegalmente à margem do antigo circuito de Jacarepaguá. Na década de 1980, eles receberam os títulos de posse, e a comunidade foi legalizada.
Naquela época, a área era um pântano localizado a 40 quilômetros do centro da cidade. Os moradores valorizavam a coesão da comunidade e as baixas taxas de criminalidade – ao contrário de muitas favelas da capital fluminense. "Nós éramos como uma grande família", relata Maria da Penha. "Era uma vida boa." Até que vieram os Jogos Olímpicos.
Para abrigar o coração dos Jogos foi escolhida a Barra da Tijuca, um bairro de classe média no oeste da cidade que avança a passos largos para se tornar uma área de imóveis luxuosos. A prefeitura chama as mudanças na região de "legado" dos Jogos Olímpicos para os moradores da cidade. Pode ser, mas para quais moradores?
Localizada no meio da Barra, a Vila Autódromo deveria sair, decidiu a prefeitura. Com indenizações por vezes maiores, por vezes menores, as autoridades cariocas tentavam tornar atraente um acontecimento doloroso para os moradores: a remoção para outra parte da cidade. Aqueles que se recusaram a partir passaram a ser vítimas de uma guerra psicológica: às vezes a luz era cortada, outras vezes entulho era depositado na frente da porta de casa.
Moradores recebem ajuda profissional
A cidade não contava, porém, com a resistência dos moradores: eles evocaram o seu direito de posse, assegurado há décadas, e recorreram à ajuda profissional. Com duas organizações de planejamento urbano, criaram um projeto alternativo para a comunidade. O plano previa inseri-los no contexto urbano e manter os residentes no local.
O conceito, que expuseram à prefeitura em 2012, foi chamado de Plano Popular da Vila Autódromo. Eles ouviram todo tipo de promessas, mas a única coisa que receberam foram ameaças. "Eles disseram: ninguém vai poder permanecer aqui, e quem não aceitar as condições vai perder tudo", relata Maria da Penha.
A urbanista Giselle Tanaka é uma das pessoas que ficou do lado dos residentes. Professora de planejamento urbano na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ela colaborou na elaboração do Plano Popular.
"A estratégia inicial da prefeitura foi atrair alguns moradores para as novas habitações com o pagamento de altas indenizações", explica Tanaka. "Aí, quando as autoridades municipais já não tinham mais muito dinheiro, elas disseram para os outros: é isso ou nada."
Além disso, continuou a urbanista, surgiam cada vez mais argumentos para justificar por que os moradores deveriam aceitar a proposta de mudança. "Às vezes eram aspectos ambientais, às vezes uma estrada que deveria ser construída. Eu participei de nove reuniões, o que não foi dito nelas! Por exemplo que 40 casas deveriam ser destruídas para dar espaço a uma única ponte de pedestres. Como? Eu estava convencida: isso pode ser diferente."
Apesar do trabalho dos urbanistas, muitos moradores se curvaram à pressão e ao medo de ficarem de mãos vazias e foram embora. Em parte para habitações localizadas a 60 quilômetros de distância. A comunidade foi separada.
Despejo sem aviso prévio
O prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, diz estar convencido de que agiu corretamente. "Era uma questão logística, precisávamos das vias de acesso", explica. Segundo ele, a pressão feita por muitas ONG é injustificada, já que muitos moradores teriam ido embora voluntariamente. "Quem foi recebeu uma indenização. Ninguém foi expulso", disse Paes à DW.
No entanto, quem conversar com ex-morador Altair Antunes Guimarães passa a duvidar da versão do prefeito. Guimarães se mudou da Vila Autódromo. É verdade que ele recebeu uma boa indenização: 1,2 milhão de reais. "Para mim é muito dinheiro", afirma. Sua saída, no entanto, esteve longe de ser pacífica. "Quando eles vieram, eu estava a três horas de carro do Rio de Janeiro", relata. "Meu sobrinho me ligou, dizendo que minha casa estava sendo demolida. Quando cheguei, ela já não estava mais lá."
Hoje ele mora de aluguel com sua família em outro bairro e está à procura de uma casa. Ao voltar para a Vila Autódromo e olhar para o arranha-céu envidraçado que abriga o centro de imprensa olímpico, ele diz ainda não ter aceitado a maneira como as coisas se deram.
"Isso me entristece, mas os juristas estão mais comprometidos com o prefeito do que com os cidadãos", afirma. Para ele, os culpados são Paes e o magnata da construção civil Carlos Carvalho. "A ele pertence 75% da área onde ficam os prédios olímpicos", informou Guimarães. O fato de Paes e Carvalho serem amigos de longa data e de a construtora de Carvalho ter financiado a campanha do prefeito é motivo de muitas críticas no Rio.
Em março deste ano, Paes se curvou à pressão da imprensa e apresentou uma proposta de acordo que previa a permanência de 22 famílias na Vila Autódromo, inclusive a de Maria da Penha. Mas ela diz ter sentimentos mistos. "Por um lado, sinto-me uma vencedora por poder permanecer. Por outro, éramos 583 famílias aqui."
Ao olhar para o canteiro de obras do Parque Olímpico, ela está ciente de que a boa vida de antigamente não vai voltar nunca mais. "Acordo de noite, tenho dor de garganta por causa da poeira da construção. Costumo ter problemas respiratórios." Mas, aconteça o que acontecer, Maria da Penha vai ficar.