Violência policial explode na América Latina
11 de outubro de 2020O Chile vive uma onda de indignação após o caso de um jovem manifestante que foi jogado de uma ponte por um policial no início do mês. Nas manifestações de massa no final do ano passado, que pediam melhoras no sistema de saúde, as forças de segurança foram responsabilizadas pelas mortes de mais de 30 pessoas. Centenas tiveram ferimentos nos olhos após a polícia atirar com balas de borracha diretamente contra seus rostos.
Na Colômbia, o estudante de direito Javier Ordóñez morreu no inicio de setembro depois de sofrer agressões em uma delegacia de polícia. Ele havia sido preso por, supostamente, ter consumido álcool nas ruas, em violação às regras para conter a epidemia de covid-19. Nas manifestações que se seguiram ao caso, 13 civis foram mortos, segundo relatos na imprensa. No final de setembro, novos protestos ocorreram após uma mulher transexual se alvejada por um policial durante uma operação de segurança no trânsito.
No México, milhares de pessoas saíram às ruas para protestar contra a violência policial, após a notícia de que Giovanni López, de 30 anos, morreu sob custódia da polícia depois de ser preso por não usar máscara de proteção, como exigido pela lei. Os métodos de tortura empregados pela polícia mexicana são quase tão temidos quanto aqueles utilizados pelos cartéis do narcotráfico.
América Latina lidera rankings de violência
Estes são apenas alguns exemplos do que ocorre com frequência em grande parte dos países do continente americano. Nos últimos meses, as atenções estavam voltadas para a violência policial nos Estados Unidos, após a morte brutal de George Floyd, asfixiado por um policial ao ser imobilizado depois de detido. Mas, é na América Latina que a brutalidade das forças de segurança alcança dimensões quase inimagináveis.
"O nível de violência e execuções extrajudiciais está completamente fora de controle em muitos lugares", afirma Fernanda Doz Costa, da ONG de defesa dos direitos humanos Anistia Internacional. Essa avaliação surge de uma comparação do número de assassinatos pelas forcas de segurança em cada país, através de dados que podem ser encontrados no portal de internet Wikipedia.
Segundo a enciclopédia virtual, Venezuela e El Salvador são os países com maior percentual de pessoas mortas pela polícia. Também estão bem próximos do topo da lista a Jamaica e o Brasil. Costa, porém, alerta que muitos países não divulgam essas estatísticas, o que faz com que informações confiáveis sejam de difícil obtenção.
De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que monitora os dados da violência policial no país, o Brasil tem a segunda maior taxa de homicídios por 100 mil habitantes da América do Sul, atrás apenas da Venezuela. Os dados mais recentes, de 2018, revelam a polícia brasileira foi responsável por 11 em cada 100 mortes violentas intencionais.
A historiadora Agustina Carrizo de Reimann, que realiza uma pesquisa sobre a polícia na América Latina, avalia que a brutalidade excessiva é um problema estrutural longevo associado com o papel que as forças de segurança desempenharam nos regimes autoritários e ditaduras em muitos países latino-americanos, nos anos 1970, 1980 e 1990.
Os perigos da militarização da polícia
Doz Costa também acredita haver uma associação da violência com o auge do autoritarismo no continente. Muitos policiais ainda pensam da mesma forma que antigamente e, na maior parte, não houve reformas radicais, mesmo após o fim desses regimes.
"Isso pode ser visto claramente nos carabineros, a polícia chilena, por exemplo. Eles, às vezes, se comportam como faziam durante a ditadura [do general Augusto] Pinochet, de 1973 a 1989. Em sua visão, os manifestantes representam um perigo para o Estado, e não pessoas que têm o direito de protestar pacificamente, a quem deveriam estar protegendo", observou.
Em 2019, a principal motivação dos policiais para agir de modo impiedoso veio das camadas de cima do governo. O presidente Sebastián Piñera classificou as pessoas que pediam melhores condições de saúde no país como "criminosos" e "inimigos implacáveis" que travavam uma guerra contra o Chile.
Durante a ditadura, os carabineros respondiam ao Ministério chileno da Defesa, que comandava suas operações. Mais tarde, essa atribuição foi passada para o Ministério do Interior. Mas, em algumas nações latino-americanas, a polícia ainda está sob a autoridade da pasta da Defesa, sendo que muitas vezes o chefe do Exército também comanda a polícia.
Isso faz com que os métodos de treinamento para policiais e militares sejam semelhantes, afirma Costa. Outro enorme problema associado a isso é a imunidade legal dos agentes de segurança. "Quando acusados de crimes, eles são julgados por um tribunal militar ao invés de uma jurisdição mais adequada, A Corte Interamericana de Direitos Humanos já destacou várias vezes que isso é inaceitável."
Os países não anglófonos do continente americano apresentam as maiores desigualdades sociais e os mais altos índices de criminalidade no mundo. Segundo dados divulgados pelo portal Statista, as cidade latino-americanas são, de longe, as mais perigosas na comparação internacional: dos 50 centros urbanos com maiores índices de homicídios, apenas sete não são da região.
"Espelho da sociedade"
Os altos índices de criminalidade são, com frequência, mencionados nas tentativas de explicar a brutalidade por parte da polícia – uma explicação que, para Agustina Carrizo de Reimann, da Universidade de Leipzig, não deve ser completamente descartada. "Se queremos entender e lidar com a violência policial, não devemos pensar de modo isolado", explicou. "É um espelho da sociedade em termos de violência, polarização política, racismo e até mesmo corrupção."
Muitas vezes, pessoas que são acusadas por delitos mais leves, ou mesmo as que são completamente inocentes, se tornam vítimas da política de "atirar primeiro e perguntar depois" – o que inclui o manifestante chileno que foi empurrado de uma ponte e o mexicano preso por não usar máscara.
A historiadora Carrizo, de nacionalidade argentina, vê exemplos disso também em seu país. Ela própria testemunhou a execução de um ladrão de carteiras por um policial em plena rua. "Ele simplesmente mirou na cabeça", lembrou.
De modo geral, ela avalia como desgastada a relação dos argentinos e cidadãos de outros países da região com suas polícias. "A desconfiança atravessa todas as camadas da população", observou.
A violência policial atinge principalmente os mais pobres e as minorias, sejam estas de indígenas, como o povo Mapuche no Chile e Argentina, ou os negros nas favelas brasileiras. Em muitos lugares, a polícia não vê a si própria como uma entidade de proteção e ajuda à população civil em geral, o que é ainda pior entre os menos privilegiados.
O problema da violência policial na América Latina existe há décadas, mas voltou ao centro das atenções com o surgimento dos protestos antirracismo nos Estados Unidos liderados pelo movimento Vidas Negras Importam, além dos escândalos recentes nos demais países. Entretanto, segundo Fernanda Doz Costa, a crise do coronavírus também contribui para o que chamou de "oportunidade histórica para reformar as forças policiais".
Ela sugere que tais reformas devem incluir novos meios de recrutamento e treinamento, melhor remuneração e o fim da impunidade. Até o momento, há na maioria dos países uma falta de vontade política para realizar mudanças tão amplas.
"Se [os governos] quiserem se manter estáveis por tempo prolongado, eles não terão outra escolha", afirma Costa. Caso contrário, a espiral da violência continuará a aumentar e os distúrbios sociais se agravarão. "Vimos nos protestos recentes em países diferentes: quanto mais a polícia comete excessos contra as pessoas, mais as manifestações são reforçadas".