Violência racista dá sinais de escalada na Itália
16 de agosto de 2018O estrondo de uma arma de ar comprimido que no início de julho perturbou a calma da arborizada estrada provincial, primeiramente provocou incredulidade – nem todo mundo em Forli, no centro da Itália, presta muita atenção aos eventos locais.
Hugues Messou, natural da Costa do Marfim, de 34 anos, não teve como escapar do fato: ele estava a caminho de casa de bicicleta quando o tiro o atingiu no abdômen. Tendo vivido na cidade por mais de dez anos, nunca a considerara um lugar perigoso, nem mesmo hostil, apesar de uma ou outra palavra racista lançada contra ele.
"O carro parou por uns segundos na minha frente, mas não consegui ver exatamente quem estava dentro. Eram pelo menos duas pessoas, por volta dos 30 anos, talvez mais velhos", conta.
No dia seguinte, ele fez um boletim de ocorrência na delegacia. Há câmeras estrada abaixo, a cerca de 200 metros do local do incidente. Até hoje, o costa-marfinense não teve novidades sobre as investigações, e, até a data de publicação desta reportagem o departamento de polícia local não respondeu aos pedidos de comentários da DW.
"Quem fez isso, saiu de casa com a intenção de atirar numa pessoa negra", diz ele. "Era tarde da noite, e aconteceu duas vezes no espaço de dois dias."
Dois dias antes desse ataque, uma nigeriana fora atingida por um projétil disparado de uma lambreta numa rua próxima. No entanto, ela não registrou queixa.
"Eu estava conversando no bar sobre o que tinha me acontecido e foi quando [o outro ataque] veio à tona", conta Messou. "Se eles estão usando armas de fogo, a coisa é preocupante."
"Teste de espingarda", "brincadeira", "um pombo"
Nos últimos 50 dias, ao menos nove integrantes de minorias étnicas foram feridos a bala na Itália. Em oito das agressões foram usadas espingardas de ar comprimido – cujas balas redondas e de metal podem causar lesões graves – e na outra, uma arma de fogo.
Num dos casos, um menino da etnia nômade rom de um ano recebeu um disparo nas costas. O atirador, um funcionário público, disse à polícia que atirou "para testar a espingarda".
O episódio mais recente ocorreu um Pistoia, na região da Toscana: dois garotos de 13 anos atiraram num homem do Gâmbia. Segundo a agência de notícias italiana Ansa, ao serem identificados pela políci,a ambos afirmaram ter se tratado de uma simples brincadeira, "sem motivação racial nem política". Essa versão foi aceita pela opinião pública em geral.
Em 11 de junho, dois refugiados do Mali, residentes de um centro de recepção próximo a Nápoles, relataram à mídia local que haviam sido alvejados a partir de um carro que passava, cujos ocupantes gritavam slogans de apoio ao ministro do Interior Matteo Salvini, do partido direitista Liga.
Um mês depois, em Latina, ao sul de Roma, dois nigerianos levaram tiros de ar comprimido disparador de um carro. Os agressores foram mais tarde identificados e respondem por lesões corporais com agravante de discriminação racial.
No fim de julho, um operário cabo-verdiano trabalhava num andaime na mesma cidade quando foi atingido nas costas por um tiro disparado de uma varanda próxima. Segundo a imprensa local, o atirador contou aos investigadores que pretendia atirar num pombo.
No início de agosto, três tiros de arma de fogo foram disparados por dois desconhecidos de lambreta contra um vendedor de rua senegalês de 32 anos. Apenas uma delas o acertou, fraturando-lhe o fêmur.
Retórica de incitação racista
Serge Diomande integra o comitê do conselho de cidadãos em Forli, além de ser presidente da Associação Nacional Além das Fronteiras (Anolf). O costa-marfinense, que vive na Itália há quase dez anos e trabalha como guardador em um armazém, considera difícil ignorar o que tem acontecido.
"Até que [os responsáveis] sejam apanhados, vamos ficar sempre na dúvida. Queremos saber quem e por quê. Isso nunca aconteceu aqui. Forli sempre foi uma cidade muito aberta", diz. "Os partidos políticos não deveriam brincar com a migração. É como brincar com a cultura italiana."
Desde que assumiu em 1º de junho, o governo de coalizão entre a Liga, de extrema direita, e o populista Movimento Cinco Estrelas tem se recusado a permitir o desembarque de navios de resgate de migrantes no Mediterrâneo. Salvini anunciou, ainda, que aceleraria as deportações de ilegais e que as comunidades rom deveriam ser recenseadas, e seus membros estrangeiros, deportados.
O governo tem respondido às acusações de que suas políticas e retórica instigam medos e legitimam a violência, negando que haja algum problema. Segundo Salvini, racismo é "uma invenção da esquerda".
O jornalista Luigi Mastrodonato documentou mais de 30 agressões físicas a membros de minorias no país desde o princípio de junho. O site antirracismo Cronache di Ordinario Razzismo (crônicas de racismo comum), da ONG Lunaria, publicou um relatório computando 169 incidentes de discriminação nos primeiros três meses de 2018.
"Motivos fúteis"
Não há dados policiais sobre crimes de ódio na Itália. Os mais recentes – do Escritório para as Instituições Democráticas e os Direitos Humanos (ODIHR), que monitora esses delitos entre os países-membros da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) – são de 2016, quando a organização contabilizou 803 crimes de ódio com registro na polícia. A maior parte se origina em racismo ou xenofobia.
Quando a polícia investiga as causas, o cunho racista nem sempre é reconhecido, e muitas vezes é minimizado, principalmente na presença de outros motivos possíveis ou de motivação múltipla.
Um dia após a eleição na Itália, o vendedor senegalês Idy Diene foi morto em Florença por um homem que declarou que pretendia cometer suicídio, mas em vez disso decidiu voltar sua arma contra um transeunte qualquer. A polícia rapidamente classificou o homicídio como "por motivos fúteis".
Em Aprilia, ao sul de Roma, um marroquino foi morto no início de agosto, numa perseguição de carro, por três homens. Estes negaram qualquer motivo racial, alegando ter acreditado que ele fosse um ladrão e decidido tomar a justiça nas próprias mãos. As circunstâncias do crime estão sendo investigadas.
"Com o passar do tempo, estamos vendo um processo de legitimação crescente de um comportamento que, no melhor dos casos, é de hostilidade e intolerância declaradas contra minorias", aponta Grazia Naletto, presidente da ONG Lunaria, que há dez anos vem documentando e conscientizando sobre o racismo no país.
"As notícias das últimas semanas são preocupantes, independentemente dos números, pois estamos falando de agressões físicas, em alguns casos, graves. Em alguns deles, as autoridades encarregadas das investigações não reconheceram o elemento racial", diz. "Com certeza há no país um clima cultural, social e político que tende a incentivar certas condutas sociais. Temos visto como elas se tornam agressivas."
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