Dez anos atrás, visitei por várias vezes o bairro de Varginha (Manguinhos), na Zona Norte do Rio. Aquela região pobre e violenta estava, na época, se preparando para receber a visita do papa Francisco, durante a Jornada Mundial da Juventude. É um bairro da região chamada de "Faixa de Gaza carioca", nome que se refere aos tiroteios entre traficantes rivais e as forças de segurança.
Sempre me pergunto como as pessoas conseguem viver num ambiente desses, de tanta violência. Claro, não há muita alternativa, não há para onde ir. E aparentemente não tem muita gente poderosa interessada em mudar o cenário.
Vivo na Zona Sul carioca, num bairro seguro e próspero. Tenho plena consciência que tal tranquilidade se deve à presença das forças de segurança. As mesmas forças que mataram, no ano passado, mais de 1.300 pessoas no Rio de Janeiro, numa cidade de talvez 7 milhões de habitantes.
Para você ter uma ideia: as forças policiais de todos os Estados Unidos mataram, no mesmo ano, um total de 1.200 pessoas. Em todo o país de 332 milhões de pessoas! E os ataques terroristas do grupo Hamas contra Israel, no dia 7 de outubro, mataram cerca de 1.400 israelenses. Num país de 9 milhões de habitantes.
Espanta-me ver como pessoas intelectuais, na maioria da tal "esquerda", condenam Israel e seus aliados e justificam as ações do Hamas. Principalmente quando se trata de pessoas de classe média e média-alta que também vivem na protegida Zona Sul carioca. Aliás, condenam a brutalidade policial no Rio, e com razão. Mas vivem suas vidas bacanas graças a essa mesma proteção policial.
A mesma polícia mata o traficante que vendeu a maconha para o tal "intelectual". Que, por outro lado, nasceu com uma vacina social que o protege da violência do Estado: ser branco e rico. E se os traficantes entrassem na casa dele para matar ou sequestrar os filhos dele, ele chamaria a polícia ou festejaria a "luta dos oprimidos"?
Sei que é difícil solucionar conflitos, tanto nas áreas pobres do Rio quanto no Oriente Médio. Também sei que há violações por todos os lados. E na falta de soluções, buscamos refúgio na nossa própria hipocrisia. Mas até para ela tem limite, acho. A atual capa da Carta Capital, chamando o presidente americano, Joe Biden, e o primeiro-ministro israelense de "senhores da guerra", que se "unem por um mundo pior", o ultrapassou. "A mídia nativa insiste na tese do terrorismo do Hamas", escreve Mino Carta. Espanto total!
Mais uma vez, parte da intelligentsia se faz de idiota útil para defender terroristas, ditadores e a máfia, como o Hamas. Fazem a mesma coisa com os Putins, Ortegas, Assads e Castros da vida. A América Latina, marcada por sua herança católica, gosta dos seus ditadores, e costumam confundi-los com libertadores.
Acham que os brutais ditadores de países como Síria, Nicarágua ou Irã são heróis por se oporem aos yankee-imperialistas. Defendem países onde feministas e gays são perseguidos e onde a classe dominante tem vida boa enquanto o resto da população foge para os países ocidentais, buscando democracia e Estado de Direito, pois não querem viver num país mafioso ou numa loucura religiosa.
Eu me pergunto se esses mesmos intelectuais que defendem o Hamas aqui nas Zonas Suis brasileiras já pisaram na "Faixa de Gaza carioca".
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Thomas Milz saiu da casa de seus pais protestantes há quase 20 anos e se mudou para o país mais católico do mundo. Tem mestrado em Ciências Políticas e História da América Latina e, há 15 anos, trabalha como jornalista e fotógrafo para veículos como a agência de notícias KNA e o jornal Neue Zürcher Zeitung. É pai de uma menina nascida em 2012 em Salvador. Depois de uma década em São Paulo, mora no Rio de Janeiro há quatro anos.
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