Voto antecipado nos EUA gera acusação de supressão eleitoral
30 de outubro de 2020As imagens foram transmitidas ao redor do mundo: com um número recorde de americanos votando antecipadamente na eleição presidencial deste ano, dezenas de milhares de pessoas em estados como Virgínia, Texas e Geórgia enfrentaram longas filas e esperaram várias horas para votar. As imagens geraram perplexidade e angústia da Europa à Ásia.
Para muitos eleitores, entretanto, as longas filas eram esperadas. Em uma nação profundamente polarizada, a importância de votar nas eleições deste ano parece ser uma das poucas coisas sobre o que os americanos podem concordar.
Em uma tarde úmida da semana passada em um subúrbio ao norte de Atlanta, uma mulher afro-americana esperava pacientemente em uma cadeira portátil equipada com um painel para se proteger do sol do meio-dia. Ela estava esperando há cinco horas. "É uma eleição muito, muito importante", disse. "Tantas coisas estão acontecendo no mundo, e acho que muitas pessoas estão dispostas a fazer com que suas vozes sejam ouvidas."
No entanto, há uma batalha amarga sendo travada para decidir qual voz será ouvida, e a Geórgia se tornou uma arena central dessa guerra. Ao longo da última década, os democratas e grupos de defensores do voto entraram em confronto com funcionários republicanos sobre como seria uma eleição livre e justa.
Organizações que lutam pelo direito do voto, como Fair Fight e Common Cause, afirmam que as longas filas nas votações antecipadas do estado são um exemplo de supressão de eleitores: erguendo barreiras ao voto que afetam certos grupos da população.
Minorias esperam mais para votar
Um relatório do cientista político Jonathan Rodden, da Universidade de Stanford, com dados compilados pela rede de emissoras públicas Georgia Public Broadcasting e pelo grupo de jornalismo investigativo ProPublica revelou que em locais de votação onde mais de 90% dos eleitores ativos registrados eram minorias, o tempo mínimo de espera médio era de 51 minutos; em distritos onde mais de 90% dos eleitores registrados eram brancos, a média caiu para seis minutos.
"A Geórgia continua se esforçando para impedir que os negros votem, assim como para hispânicos e asiático-americanos", afirma Carol Anderson, professora de Estudos Afro-Americanos da Emory University e autora do livro One Person, No Vote: How Voter Suppression is Destroying Our Democracy ("Uma pessoa, nenhum voto: como supressão de eleitores destrói nossa democracia", em tradução livre). Ela aponta que todos os três grupos votam maciçamente nos democratas.
"É um legado em que você sabe que este sistema em vigor não foi projetado para honrar e abraçar o seu direito de voto, mas está sistematicamente trabalhando de diferentes maneiras para impedi-lo", disse a especialista, em entrevista à DW.
Para os republicanos, no entanto, as longas esperas são o resultado de medidas pandêmicas como distanciamento físico e planejamento insuficiente.
"Essa ideia de que há supressão de eleitores acontecendo hoje é apenas um mito – um mito narrativo criado por certas pessoas para explicar por que perdem as eleições", afirmou Hans von Spakovsky, jurista da conservadora Fundação Heritage e advogado republicano. "Há longas filas porque as pessoas estão cometendo o erro de votar cedo em vez de votar no dia da eleição, quando há muito mais locais de votação abertos."
Ainda assim, nos últimos anos, 10% dos locais de votação foram fechados na Geórgia, de acordo com a ProPublica. E em um estado com uma longa história de discriminação racial, tais medidas geraram preocupação.
História da supressão eleitoral nos EUA
No final do século 19 e na primeira metade do século 20, os afro-americanos em todo o sul do país estavam sujeitos às leis de Jim Crow, que impunham a segregação racial. Os afro-americanos eram fisicamente impedidos de votar por meio de violência e intimidação e legalmente impedidos com taxas de votação e testes de alfabetização impossíveis, nos quais eram obrigados a recitar passagens da Constituição ou adivinhar quantas bolhas há em uma barra de sabão.
A lei dos direitos de voto de 1965 revogou essas práticas e exigiu que os estados com histórico de discriminação racial pedissem a aprovação do governo federal antes de introduzir qualquer alteração nas leis eleitorais.
Em 2013, a Suprema Corte anulou essa disposição da legislação, abrindo caminho para os estados agirem de forma independente.
O Centro Brennan para Justiça, um instituto de políticas públicas sem fins lucrativos, mostra que vários estados adotaram medidas mais rigorosas de identificação do eleitor, para eliminar os eleitores inativos das listas e consolidar as seções eleitorais. Aparentemente, essas medidas visam garantir que ninguém vote ilegalmente.
De acordo com Anderson, no entanto, essas novas medidas afetam injustamente as comunidades negras e imigrantes: os expurgos acabaram apagando eleitores legítimos dos cadernos eleitorais; menos locais de votação tornaram mais difícil para os americanos mais pobres chegarem a um recinto eleitoral; e requisitos mais rígidos de identificação do eleitor são uma barreira para os milhões de americanos que não possuem documentos de identidade emitidos pelo governo.
"Parte da genialidade sutil das exigências de identidade do eleitor é que elas parecem razoáveis", disse. "Mas não são razoáveis, e o sistema é construído sobre uma base de mentiras. A mentira é uma fraude eleitoral massiva e desenfreada."
Fraude é ameaça real ou desculpa?
A fraude eleitoral de fato se tornou um grito de guerra para muitos republicanos. O presidente Donald Trump afirmou repetidamente, sem provas, que a votação universal por correspondência cria uma fraude generalizada.
Em setembro, autoridades do estado da Geórgia anunciaram ter identificado mil casos de pessoas que votaram duas vezes nas primárias presidenciais em junho.
Por sua própria conta, a Fundação Heritage lista apenas cerca de 1,3 mil casos comprovados de fraude em mais de um bilhão de votos nas últimas décadas. Uma investigação recente da emissora pública americana PBS e da Columbia Journalism Investigations revelou que muitos dos casos não eram de fato fraude.
Hans von Spakovsky, que tem sido uma das principais vozes conservadoras ao colocar a fraude eleitoral na agenda do Partido Republicano, insiste que essas são apenas a ponta do iceberg, apontando para um estudo diferente da Fundação Legal de Interesse Público, indicando que houve 140 mil casos de fraude eleitoral em 2016 e 2018. "Há muitos casos de fraude que os funcionários eleitorais deveriam investigar, mas não estão fazendo nada a respeito", alertou.
As autoridades eleitorais federais continuam a rejeitar alegações de fraude sistêmica nas eleições nos Estados Unidos. E o aumento vertiginoso do comparecimento até agora neste ano ressalta a importância de encorajar mais americanos a votarem no pouco tempo que resta.
"Há problemas em dizer aos eleitores que a experiência deles vai ser difícil, que eles podem ser intimidados na votação, que a fraude eleitoral é generalizada. Todas essas coisas não são verdadeiras", ressaltou David Becker, diretor executivo do Centro de Inovação e Pesquisa Eleitoral. "É muito importante para os eleitores americanos e aqueles que assistem a tudo do exterior entender que é muito provável que, se forem votar, descobrirão que este é um processo simples."