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Vídeo mostra desinteresse do governo nas vítimas da pandemia

23 de maio de 2020

Bolsonaro e ministros discutiram até a legalização dos jogos de azar, mas não mencionaram UTIs ou como lidar com aumento de mortes por covid-19. Um dos participantes chegou a afirmar que "pico" parecia ter passado.

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O presidente Jair Bolsonaro
Bolsonaro falou até sobre obesidade de agente que morreu de covid-19, mas não em como evitar mais mortesFoto: Getty Images/A. Anholete

Em pouco menos de duas horas de reunião, o presidente Jair Bolsonaro e seus ministros discutiram a legalização de jogos de azar e a privatização do Banco do Brasil, e abordaram até mesmo a quantidade de descendentes de ucranianos no Brasil, além de distribuírem ofensas para governadores, prefeitos e membros do Supremo Tribunal Federal (STF). O vídeo do dia 22 de abril, liberado pelo STF, também reforçou a suspeita de que Bolsonaro agiu contra a Polícia Federal (PF) para proteger sua família.

Apesar da gama variada e confusa de assuntos, um tema em especial despertou pouco interesse de quase todos os participantes: o combate ao aumento de infecções e mortes por covid-19.

As palavras "UTI", "respiradores" e "ventiladores" não foram mencionadas uma vez sequer no encontro, de acordo com a transcrição da reunião. Praticamente nenhum participante propôs auxiliar autoridades estaduais ou municipais no combate à pandemia ou como reduzir o número de mortes e frear o avanço de casos.

Só um ministro chegou a levantar brevemente uma espécie de estratégia em meio à pandemia: Nelson Teich, que havia se juntado ao governo cinco dias antes e acabaria ficando menos de um mês no cargo. E, mesmo assim, a intervenção de Teich só despertou algum interesse de outros participantes por potencialmente envolver um plano de transição para a "saída" do isolamento social, um tema caro ao presidente, que se opõe radicalmente a qualquer tipo de quarentena.

Teich chegou a alertar que antes de qualquer flexibilização seria preciso fortalecer o sistema hospitalar, que, segundo ele, estava sendo sucateado pelo coronavírus. A fala chegou a despertar rapidamente o interesse de Walter Braga Netto, ministro da Casa Civil. Mas nem ele nem Teich apontaram como ajudar os hospitais.

Ao todo, Teich falou por menos de quatro minutos na reunião que se estendeu por quase duas horas, em plena pandemia de coronavírus.

Em 22 de abril, dia da reunião, o país acumulava oficialmente 2.906 mortes por covid-19 e cerca de 45 mil casos. Na manhã deste sábado (23/05), eram 21.048 mortos e cerca de 330 mil casos. 

Sem foco nas vítimas e doentes, o tema da pandemia acabou mesmo sendo usado por quase todos os participantes como pano de fundo para promover suas agendas radicais e paranoias e como combustível para os ataques e queixas de Bolsonaro.

Aproveitar para "passar a boiada"

O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, por exemplo, chegou a afirmar que o governo deveria aproveitar que a imprensa estava com suas atenções voltadas à pandemia para afrouxar a legislação ambiental e até mesmo as regras de patrimônio histórico.

"Estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só fala de covid e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas. De Iphan, de Ministério da Agricultura, de Ministério de Meio Ambiente, de ministério disso, de ministério daquilo."

Ucranianos e aborto

A ministra da Família, a evangélica Damares Alves, por sua vez, abordou Teich na reunião não para falar de combate à covid-19, mas para demonstrar preocupação com a presença de "feministas" no Ministério da Saúde.

Ela demonstrou a preocupação de que a questão da pandemia pudesse "trazer o aborto de novo para a pauta", como havia ocorrido anteriormente, segundo ela, com o vírus zika. Damares também afirmou, sem qualquer prova, que havia recebido informações de que "haveria contaminação criminosa em Roraima e Amazônia, de propósito, em índios, pra dizimar aldeias e povos inteiros para colocar nas costas do presidente Bolsonaro".

Damares chegou a falar sobre uma construção ao "enfrentamento do coronavírus", mas rapidamente passou para curiosidades sobre descendentes de ucranianos no Brasil. "É um país plural. Quando a gente foi buscar os povos tradicionais agora para a gente construir o enfrentamento ao coronavírus, nós descobrimos que nós temos 1,3 milhão de ucranianos no Brasil e ninguém nunca falou de ucranianos para nós no Brasil."

"Destacar comorbidades" e "armar o povo"

Bolsonaro mencionou a pandemia para reclamar de ações de governadores e prefeitos, além de juízes que autorizaram a saída de presos. "O que esses caras fizeram com o vírus, esse bosta desse governador de São Paulo, esse estrume do Rio de Janeiro, entre outros, é exatamente isso. Aproveitaram o vírus, tá um bosta de um prefeito lá de Manaus agora, abrindo covas coletivas. Um bosta", disse.

Bolsonaro também sugeriu armar a população para intimidar autoridades locais que impuserem medidas de isolamento social. "Por isso que eu quero, ministro da Justiça e ministro da Defesa, que o povo se arme! [...] Um bosta de um prefeito faz um bosta de um decreto, algema, e deixa todo mundo dentro de casa. Se tivesse armado, ia pra rua", disse.

A intervenção breve de Teich, a única em toda a reunião sobre a adoção de uma estratégia para conter a doença, também não despertou interesse de Bolsonaro. Logo após a fala do ministro, o presidente passou a se queixar da divulgação de uma nota pela Polícia Rodoviária Federal, que lamentou a morte de um agente por covid-19. Segundo Bolsonaro, a corporação deveria ter destacado que o agente era "obeso". "Vamos alertar a quem de direito, ao respectivo ministério, pode botar covid- 19, mas bota também que tinha fibrose... montão de coisa", pediu o presidente, afirmando que "não queria levar mais medo para a população".

Bolsonaro também citou o coronavírus ao falar das cobranças para mostrar seu exame. "Tem aí OAB da vida, enchendo o saco do Supremo, para abrir o processo de impeachment porque eu não apresentei meu exame de vírus, essas frescurada toda, que todo mundo tem que tá ligado", disse.

"Pico já passou, né?"

O presidente do Banco do Brasil, Rubem Novaes, chegou a minimizar a pandemia. "A minha sensação, de quem não é especialista no negócio, mas que observa os números, é que o tal do pico, o tal do famoso pico, que gerava tantas preocupações, a minha sensação é que esse pico já passou, né?".

Naquele dia, o Brasil havia registrado oficialmente em 24 horas 165 novas mortes por covid-19. Na sexta-feira (22/05), foram 1.001 novos óbitos adicionados ao balanço em um dia.

O ministro da Economia, o ultraliberal Paulo Guedes, só abordou a pandemia marginalmente, especialmente para se queixar do plano de investimentos Pró-Brasil, que vem sendo tocado por outras pastas, comparando o programa a iniciativas fracassadas do governo Dilma Rousseff. Ele também defendeu a legalização do jogo – uma pauta que foi levantada na reunião pelo ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio –,  a venda do Banco do Brasil e, como sempre tem feito desde o início do governo, apesar dos maus resultados econômicos, vendeu otimismo. "O Brasil vai surpreender o mundo", disse.

O ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, também aproveitou a ocasião para promover um cenário mirabolante para o Brasil em uma espécide de "nova ordem mundial" pós-coronavírus. "Eu estou cada vez mais convencido de que o Brasil tem hoje as condições, tem a oportunidade de se sentar na mesa de quatro, cinco, seis países que vão definir a nova ordem mundial."

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